TRÊS TOQUES PARA PENETRAR NA NOITE ESCURA DESTA
PÁTRIA A(R)MADA
Ademir Assunção
1
Artur Gomes é daqueles poetas que não se contentam em grafar suas palavras apenas nas páginas de um livro. Ele inscreve seus poemas no próprio corpo, na própria voz. Misto de ator saltimbanco e trovador contemporâneo, seus versos ritmados e musicais redobram a força quando saltam do papel para a garganta. O CD Fulinaíma – Sax, Blues Poesia, que gravou em parceria com os músicos Dalton Freire, Luiz Ribeiro, Naiman e ReubesPess, nos primórdios deste terceiro milênio, é uma das experiências mais bem-sucedidas da fusão entre poesia oralizada e música: os versos lancinantes surgem como navalhas de corte preciso entre os blues, bossas, rocks e baladas. Navalhas que acariciam, mas também cortam a pele do ouvinte.
Há delícia e dor em sua poética. Uma
delícia sensual, sexual, que se explicita em versos como “poderia abrir teu
corpo / com os meus dentes / rasgar panos e sedas // com as unhas /arreganhar
as tuas fendas / desatar todos os nós // da tua cama arrancar os cobertores /
rasgando as rendas dos lençóis”. Há dor por uma terra prometida e sempre
adiada, “por uma bandeira arriada / num país que não levanta”. É nesse espaço
entre a delícia e a dor que o trovador levanta sua voz e emite seus brasões em
alto e bom salto, a plenos pulmões: “eu não tenho pretensões de ser moderno /
nem escrevo poesia pensando em ser eterno / veja bem na minha língua as
labaredas do inferno / e só use o meu poema com a força de quem xinga”.
2
Cada poeta escolhe sua tribo, reinventa seus ancestrais. A tribo de Artur Gomes
vem de uma vasta tradição de trovadores inquietos e inquietantes, hábeis no
trato do verso e ferinos no uso do humor, do amor e da revolta. Uma linhagem
que vai de Arnaut Daniel a Zé Limeira e passa por Oswald de
Andrade, Torquato Neto, Paulo Leminski e Uilcon Pereira, para listar alguns.
Cada poeta inventa também o
território mítico onde mergulha sua poesia e sua própria vida. Alguns de
maneira explícita, outros, mais velada. Há muitos anos surge na poesia de Artur
o termo “Fulinaíma”, como uma Macondo espectral, que perpassa livros, sobe aos
palcos, atravessa as faixas do CD. Seria um território de folias macunaímicas,
uma terra de prazeres e ócios criativos, avessa ao eterno passado colonial que
não conseguimos nunca superar, como o fantasma de antigos engenhos em que a
“usina / mói a cana / o caldo e o bagaço // usina / mói o braço / a carne o
osso // usina / mói o sangue / a fruta e o caroço // tritura suga torce / dos
pés até o pescoço”?
3
Artur Gomes é também daqueles poetas que vivem reescrevendo seus poemas,
reinserindo-os em outros contextos, reinventando “a poesia que a gente não
vive”, aquela mesma que transforma “o tédio em melodia” - para relembrar
Cazuza, outro bardo pertencente a mesma tribo. Quem
acompanha sua trajetória errante e anárquica provavelmente vai
identificar neste livro poemas já publicados em outros – porém, com
modificações de tonalidades, de timbres, de intenções.
Se não é despropositado pensar que Dante Alighieri enxertou em sua Divina
Comédia inúmeras desavenças políticas, sociais e culturais de sua época e
mandou para o inferno pencas de seus inimigos florentinos, é interessante perceber
este Pátria A(r)mada reinventado no contexto deste Brasil que retrocedeu
décadas depois do golpe político-jurídico-midiático deflagrado em 2016. Esses
tempos passarão, é certo, mas este livro ficará – como um potente desconforto,
um desajuste, um desconcerto desse mundo cão e chão. Se vale como trágica profecia – ao modo do cego Tirésias –, após um
breve período de sonhos que mais uma vez não se cumpriram, os olhos abertos
desses versos ecoarão nos ouvidos de
muitos e cortarão a carne de tantos: “ó,
baby, a coisa por aqui não mudou nada / embora sejam outras siglas no emblema /
espada continua a ser espada / poema continua a ser poema”.
Ademir Assunção – poeta, escritor, jornalista e letrista de música brasileira. Autor de livros de poesia, ficção e jornalismo, venceu o Prêmio Jabuti 2013 com A voz do Ventríloquo (Melhor Livro de Poesia do ano). Poemas e contos de sua autoria foram traduzidos para o inglês, espanhol e alemão, e publicados em livros e revistas na Argentina, México, Peru e EUA.
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