quarta-feira, 21 de setembro de 2022

 






macerar a vida nas mãos

muito além da superfície
entrar com gosto, com todos os sentidos
nos labirintos das so(m)bras
amar muito além da pele
e das palavras da boca
amar os olhos e os seus desvios
amar o grito - jorro de vazios
amar os ossos, as vísceras, os rios
amar em mim e no outro o que fede
onde sangra
o que se esconde amedrontado
atrás das pernas fechadas do ego
amar cirurgicamente
cavando, cruando, mexendo
que a vida, me parece
não é para os fracos de estômago

Clara Baccarin
do livro Vísceras
Editora Patuá - 2019 





Também estivem em Pompeia

Também estivemos em Pompeia
O sol açoitava as pedras
sonhando repetir a lava

Também estivemos em Pompeia
Respirando a poeira do tempo

O Vesúvio era apenas
inofensivo amontoado de rochas distantes
ou uma boa ideia para um nome de gato

Também estivemos em Pompeia

Se eu estiver em fuga
se uma língua de vulcão extrair de meus ossos
minhas carnes
eu vos rogo
jamais preencham minha carcaça
com gesso
ou com outras substâncias moldáveis

Jamais, vos suplico
aprisionem meu medo
num rosto apavorado de estátua.

Simone Teodoro
do livro Também Estivemos em Pompeia
Editora Patuá - 2019 



desobediência

os acontecimentos
batem à minha porta

entridentes, insistem
batem
batem

se não os atendo/atento
insinuam-se pelas frestas
mandam sinais
fumaça
notícias
megabaites

e
batem
batem

se me finjo de morta
explodem a vidraça
estilhaços
prestes a romper
aneurismas herdados

contrariando o mestre
(para que a língua não trave
para que não me arrependa)
deles construo poemas
e
com certo engenho
alguma poesia

Dalila Teles Veras
do livro - Tempo em Fúria
Edições Alparrabio - 2019 



a pedra fundamental::.

a pedra lascada
a pedra bruta
a pedra lapidada
a pedra da gruta

tempestade de neve
tempestade de areia
tempestade interior

cemitério indígena
cemitério de elefantes

moinho
moendo água
redemoinho
remoendo a alma

pingo de gelo
estalactite estalagmite
d i n a m i t e

cratera na gruta
chuva de diamantes

Andri Carvão 




AUTO-RETRATO

talvez, uma noite
retorne

cansado das batalhas
e das festas

nada
nas mãos

muito pouco
nos bolsos

os olhos cheios
de imagens

os ouvidos loucos
de sons

shows dos stones
desenhos de escher

a pele tocada
por mulheres chocantes

vagabundo
cruzando estradas

ítacas
revisitadas

exausto das guerras
um dia, talvez

retorne

sem lenço
sem retoques

talhos
no rosto

cicatrizes
na pele da alma

a paisagem
se dissolvendo

velho, arqueado

o sapato
todo furado

e dois versos
na camiseta:

eis a vida
que não vendo

Ademir Assunção
Do livro Risca Faca

Demônio Nero - 2022



A VOZ DA MINORIA

Fique fria, meu bem, fique fria.
Ela treme também, a maioria.
Fique fria, meu bem.
Fique fria.
As ovelhas também fingem que são guias.

Eles querem enquadrar você no sexo.
Eles querem formatar você nos versos.
Eles chamam retrocesso, tradição.
E convidam com sorriso de beato
A calçar as sandálias da submissão.

Mas nós não, meu bem, não calçaremos.
Nossos pés são tortos
Mas de caminhos plenos.

Victor Colonna 



Há um movimento frio e feroz
movendo-se na história da
humanidade.
O humano apartado do céu e da terra,
apartado de si mesmo.
O humano rendido e preso
em sua dissonante esfera
– num viver distanciado das significâncias
da vida.

III

Um deus foragido olha do cimo da destruição

Um círio infindo de punhos acesos
coturnos raivosos em marcha
um rebanho desembesta em fúria e à esmo
uma revoada de abutres sobre um campo
coalhado de ossos e vísceras

À margem esquerda
olhos atônitos sequer esboçam mínima reação
sequer vicejam a luta
sucumbem à opressão
e toda vociferação converte-se em murmúrio
imprecação e silêncio

No abrasar das horas
o tempo reflui num leito de açoites
No pouso do medo
toda réstia de luz coabita o breu
o medo cai como pedra no fundo de cada dia
e a desesperança cintila à boca de cada noite

O poder no cio
fecha as janelas de um passado
fincado em irremovível paisagem
- o poder tem os olhos de uma noite sem fim

A violência é a ordem do dia - o veneno
que entorpece e contagia
abre fendas radioativas onde corre a larva do ódio

Algo inominável deflagra a combustão das horas
interdita o tempo
o tempo partido
o país partido
a cidade partida
o humano partido ao meio

Toda gente se extingue para além das casas
e dos muros
a sobrevida pulsa em ilhas dentro de ilhas

Sob à mira do fuzil
a carne negra
a carne índia
a cor vermelha
A descrença é a ferida aberta
o cancro incurável

A segregação é a flor sanguínea de verbo coagulado
e toda esperança desfolha aos ventos
que chicoteiam brancas bandeiras

A intolerância forja a gangrena
seus raios de dor são o traçado
que revela a geometria do terror

No átrio espelhado de ocasos
a besta de esporas e chifres faz a festa
dança _ gargalha
e vomita sobre a clareira côncava
que engole os cânones dos justos

Nesse reino escuro o frio arde
e queima ao estio do sol
vergam-se os girassóis
e gárgulas saem de seus buracos de sangue
para lamber as feridas da paz

Mulheres e homens que teimam
reinar em sia íntima liberdade de pensar
decretam o auto-exílio
todas ilhadas
todos ilhados
ilhados e tristes
terrivelmente tristes

Um deus foragido olha do cimo da destruição
contempla o ataúde da fé
e chora sobre as ruínas do humano
em seus gestos finais de autofagia
a sobre humana desordem de sentidos precede o golpe fatal:
a morte da liberdade.

Wanda Monteiro 

 

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