sábado, 25 de fevereiro de 2023

múltiplas linguagens


impasse

 

e vem a mão

que corta o gesto,

o pé

que impede o passo

e o estandarte

tomba inútil

 

e surge um tempo

de pessoas cabisbaixas

que trazem nos olhos

aflição e medo:

 

o futuro

ficou em pensamento

adiado o momento,

remoem

 

mãos e gargantas

feridas

estão arquivadas

atrás de portas,

de peitos,

de prantos

 

este é um tempo

de gravatas

no pescoço;

nas ruas,

os ternos passeiam

e se esquecem

 

mas há de surgir

um tempo

de gargantas

sufocadas

de frontes

retesadas

adquirindo vida

 

há de voltar-se

atrás de pensamento

e sacudir-se poeiras

dos arquivos

 

e revolver-se

todo mundo,

toda mente

 

há de se ter

um saldo positivo

e o punho à frente:

 

há de enterrar-se

as fardas e os ternos

para sempre

 

Antonio Roberto de Gois Cavalcanti – Kapi – Coletânea Ato 5 – 1979 – Grupo Uni-Verso


                            e ela vai pintando

 o homem com a flor na boca

 com seus pincéis de aquarela

 poema que só é possível

 pelas lentes dos olhos dela   

                             

SATURNAL

 

Paraíso é essa boca fendida de romã
— bagos de vida,
paraíso é esse mistério de água ininterrupta
fluindo do terminal das coxas,
é a vulva possuída-possuindo
violáceo cacho de uvas,
é esse dorso de vinho navegável
atocaiado para um crime.

 

Olga Savary



Enciclopédia

 

Hácate ou Hécata, em gr. Hekáté. Mit. gr.

Divindade lunar e marinha, de tríplice

forma (muitas vezes com três cabeças e

três corpos). Era uma deusa órfica,

parece que originária da Trácia. Enviava

aos homens os terrores noturnos, os fantasmas

e os espectros. Os romanos a veneravam

como deusa da magia infernal.

 

Ana Cristina César



O Duplo

 

Debaixo de minha mesa

tem sempre um cão faminto

-que me alimenta a tristeza.

 

Debaixo de minha cama

tem sempre um fantasma vivo

-que perturba quem me ama.

 

Debaixo de minha pele

alguém me olha esquisito

-pensando que eu sou ele.

 

Debaixo de minha escrita

há sangue em lugar de tinta

-e alguém calado que grita.

 

Affonso Romano Santanna


Canção Amiga

 

Eu preparo uma canção

Em que minha mãe se reconheça

Todas as mães se reconheçam

E que fale como dois olhos

 

Caminho por uma rua

Que passa em muitos países

Se não se veem, eu vejo

E saúdo velhos amigos

 

Eu distribuo um segredo

Como quem ama ou sorri

No jeito mais natural

Dois carinhos se procuram

 

Minha vida, nossas vidas

Formam um só diamante

Aprendi novas palavras

E tornei outras mais belas

 

Eu preparo uma canção

Que faça acordar os homens

E adormecer as crianças

 

Carlos Drummond de Andrade



O meu cabelo varrido

eu lhe dou. Se quiser mais

busco palavras na feira

falo dos algodoais

já plantados numa beira

dos seus olhos vendavais.

 

Romério Rômulo 



COMO UM RIO 1

 

Talvez eu seja só

o que se perdeu

no espelho,

buscando chaves

onde não existem portas.

 

Incontáveis são meus juízes;

esses que me aferem

pela cor da carne — sem

os ossos — fac-símiles

atados à História.

 

Vivo de desperdiçar

a dor —,

reinventando afetos.

 

)Ah, esses desviados

que nos amam

à medida

dos incêndios, como se amar

fosse morrer!(.

 

Vivo de erguer esfinges

onde a palavra faz seu ninho.

 

Não tenho espadas

para medir meus rastros,

sou somente um rio

à sombra dos tigres.

 

Salgado Maranhão 


Espero resignado

por um mundo

que jamais abraçarei.

 

Como então explicar

o sentimento de felicidade

que me abraça, agora?

 

Espero um destino

que, de tão óbvio

só me resta rir

e rir com gosto.

 

Rir com os amigos,

escrever poemas

sem esperar o amanhã.

 

A vida é muito sem graça

para quem não deseja riqueza

para quem despreza o prazer

para quem ri de si mesmo.

 

Em algum lugar

do multiverso, talvez

o James Web já saiba

disso, mas vou falar...

 

Em algum lugar

ao modo de Maiakóvski

exista, acredito, que

no planeta marte,

 

Um único micróbio feliz.

 

Jiddu K. Saldanha


in_digesto

almocei letras
nem todas
por mim colhidas


encolhi-me
disfarcei o horror
de saber
dentro de mim
mil palavras
reverberando estanques


na estante

consumo-me insensatez

:
gesto solidão

Ivy Menon



Ofício

 

as meninas da periferia querem aprender o ofício da escrita

as mais velhas também

porque quando uma mulher escreve não há saposguelaabaixo

não há voz alta mandando calar

quando uma mulher escreve

os túmulos das bisavós tremem

e uma flor nasce na quebrada do muro

saliente e vermelha

 

Daniella Guimarães de Araújo

Imagem do excelente filme : Ela mora logo ali


Amavisse

 

Como se te perdesse, assim te quero.

Como se não te visse (favas douradas

Sob um amarelo) assim te apreendo brusco

Inamovível, e te respiro inteiro

 

Um arco-íris de ar em águas profundas.

 

Como se tudo o mais me permitisses,

A mim me fotografo nuns portões de ferro

Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima

No dissoluto de toda despedida.

 

Como se te perdesse nos trens, nas estações

Ou contornando um círculo de águas

Removente ave, assim te somo a mim:

De redes e de anseios inundada.

 

Hilda Hilst



 

um avô, pela dor
destroçado
do injusto cárcere
liberado
vela seu neto morto

um homem, em triste silêncio
armado apenas do que É
em sua dignidade de homem
(estadista inconteste
preso político)
é escoltado à câmara
do seu menino morto

fardas e armas
dedos sobre o gatilho
posição de atirar
ostensivamente
permanecem
durante a curta hora e meia
que deram ao avô para ficar
com seu menino morto

a cena
diz muito do brasil atual
e mais aind do homem
de quem parte desse brasil
tem tanto medo
ainda que de sua boca
como agora
uma única palavra
seja pronunciada

(Dalila Teles Veras)
no livro Tempo em Fúria
obs.: sp, 02.03.2019
liberado pela justiça, ex-presidente lula participa de velório do neto de 7 anos e retorna ao presídio em curitiba. g1.globo.com

 


Marca Registrada

 

não tem problemas

te encontrar na cama

com teu governante

eu sempre soube

tua fome era de prazer

e esse teu amante

esse teu amante baby

sempre foi um grande ditador

 

não entro nessa de pensar que a vida

é marca registrada

numa dissonante do meu rock and roll

pode ser que eu ganhe

um chifre em minha cara

mas o prazer que que eu tenho

é estar de baixo do teu cobertor

 

Artur Gomes/Luizz Ribeiro

Qualquer Prazer – disco vinil

lançado em 1992

 

gravada também no CD Fulinaíma Sax Blues Poesia – 2002 –No vinil Qualquer Prazer, Marca Registrada é rock and roll, no CD Fulinaíma  Sax Blues Poesia, foi gravada numa versão blues: Luizz Ribeiro (voz e violão) e Ângelo Nani (gaita).



 

eclosão atlântica

 

o sal que escorre

sobre tuas costas

é mar de esperma

que vai fecundar

entre tuas coxas

mariscos ostras

peixes vários

na explosão das algas

quando o mar do cio

em eclosão atlântica

for comunhão de olgas

e as conchas grávidas

de sereias

parir em seus ouvidos

 

Federico Baldelaire

leia mais no blog https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/




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