domingo, 9 de outubro de 2022

Mostra Visual de Poesia Brasileira - Poesia em Movimento




Uma didática da invenção

 

O rio que fazia uma volta

atrás da nossa casa

era a imagem de um vidro mole... 

Passou um homem e disse: 

Essa volta que o rio faz...

se chama enseada... 

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás da casa. 

Era uma enseada. 

Acho que o nome empobreceu a imagem.

 

Manoel de Barros





poeminha do contra

 

todos esses que estão aí

atravancando o meu caminho

eles passarão

e eu passarinho

 

Mário Quintana

 




um dia me lanço na trama

noutro me arrisco no jogo

não tenho medo do drama

quero o circo pegando fogo


6 outubro - 2022

 

a mulher dos sonhos

voltou ontem

sedenta faminta insaciável

esgotou-me

à última gota

 

mesmo vazio

me senti um tanto cheio

nem foi delírio loucura

porque vi no meu e-mail

o nome da criatura

 

 

Artur Gomes

A Traição Das Metáforas

Alpharrabio Edições  - 2000 







Jura secreta 13 

o tecido do amor já esgarçamos 
em quantos outubros nos gozamos 
agora que palavro Itaocaras 
e persigo outras ilhas 
na carne crua do teu corpo 
amanheço alfabeto grafitemas 

quantas marés endoidecemos 
e aramaico permaneço doido e lírico 
em tudo mais que me negasse 
flor de lótus flor de cactos flor de lírios 
ou mesmo sexo sendo flor ou faca fosse 
Hilda Hilst quando então se me amasse 

ardendo em nós salgado mar

e Olga risse 
pulsando em nós flechas de fogo

 se existisse 
por onde quer que eu te cantasse ou Amavisse
 


Jura secreta 14 

 

eu te desejo flores lírios brancos 
margaridas girassóis rosas vermelhas 
e tudo quanto pétala 
asas estrelas borboletas 
alecrim bem-me-quer e alfazema 

eu te desejo emblema 
deste poema desvairado 
com teu cheiro teu perfume 
teu sabor teu suor tua doçura 

e na mais santa loucura 
declarar-te amor até os ossos 

eu te desejo e posso : 
palavrArte até a morte 
enquanto a vida nos procura 

 

Artur Gomes

Juras Secretas

Editora Penalux – 2018



 A Educação pela Pedra

 

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

 

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

 

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

 

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma.

 

João Cabral de Melo Neto

Publicado no livro A educação pela pedra (1966).



A escrita

 

A folha de pele alva

cativa-me...

embriaga-me...

penetra-me n'alma.

Pego de um lápis, se por agora,

a fim de acariciá-la,

dentro de uma simbiose

liamada de prazer.

Sinto frio, calor, suo demasiadamente

vendo cada sílaba ser contorneada.

Orgasmos literários vão e vêm...

Como quem morre, escrevo versos.

      

                   Caio Valeriote



A FOGUEIRA

 

Em dezembro, sonhar com janeiro,

em janeiro pensar: fevereiro

vai ser bem diferente

 

A semana inteira chocar o sábado,

no sábado, esperar o domingo.

 

No domingo dizer: no outro, quem sabe?

O tempo todo apoiar-se na bengala

da ilusão, a preferir a cegueira

à visão do abismo.

 

Cansei-me da farsa.

Fiz uma fogueira, joguei

a esperança dentro dela

e arregalei os olhos.

 

Astrid Cabral



O COISA RUIM

me querem manso
cordeiro
imaculado
sangrado
no festim dos canibais

me querem escravo
ordeiro
serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal

me querem rato
acuado
rabo entre as pernas
medroso
um verme, pegajoso

mas eu sou osso
duro de roer
caroço
faca no pescoço
maremoto, tufão, furacão

mas eu sou cão
lato
mordo
arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade

qual nero
devasto o lero lero
entro em campo
desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato

Ademir Assunção
do livro Zona Branca (2001) 




 AGOSTO À CONTRAGOSTO

 

Posto que vasto é o tempo

E visto que nos é imposto

Viver só um tempo sucinto

Numa sina à contragosto

 

E a soma insana dos anos

Aos poucos sela um desgosto

No raso espaço do espelho

O tempo esculpe seu rosto

 

                                      Tchello d`Barros




Além de mim

Quero apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

 

Olga Savary



Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora 

quem está por fora
não segura
um olhar que demora 

de dentro de meu centro
este poema me olha



Ali

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali ali se dissesse

quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

 

Paulo Leminski




Amanhã meu corpo dói

 

se não é de danças e de bênçãos

que eu o cubro

Amanhã as ondas devolvem

o que sem sentir com o dentro

eu mergulhei

Amanhã o coração regurgita

onde eu pisei

sem caber todo o meu ser

 

Clara Baccarin



Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hida Hilst



Ao teu lado

toda a história do amor:
acordar ao teu lado
de bruços
a penugem das costas, em remoinho
(e esta ave nascida bem no meio das hastes
das duas pontas de faca 

nas omoplatas 


Mar Becker



Canção Amiga

 

Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,

todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos.

 

Caminho por uma rua

que passa em muitos países.

Se não me vêem, eu vejo

e saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

como quem ama ou sorri.

No jeito mais natural

dois carinhos se procuram.

 

Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras

e tornei outras mais belas.

 

Eu preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.

 

Carlos Drummond de Andrade



o negro do céu
abrilhanta a lua
ai, que frio!

em meus sonhos
o telefone toca
acordo.

a lua no céu
estrelas cintilam
oh, insônia

a lua sumiu
o céu escureceu
nada aconteceu

Cesar Augusto de Carvalho
do livro Curto Circuito
Editora Patuá - 2019
www.editorapatua.com.br





cheguei ao céu

diz o pinheiro

eu sempre quis

mas

o meu lugar

é a raíz


O SER O VOO

Nenhum ser é plenamente voo
se não sabe da magia da terra
ou totalmente luz
se o escurecer lhe cega
Todo horizonte é terrível
se o voo nega
o passo elementar

Logo   sigo   quase    pássaro



Hamilton Faria

Poemas da janela




DA INCAPACIDADE DE SENTIR LUTO

amas parasita, diz e diz, não hesita:
o amor, errante, além de tudo cego
feito um imenso morcego negro
que, imerso em trevas, só vê o ego

ouves senão por apupos meigos
inflação económica de si mesmo
insuflada por espelhos vesgos
e promessas de paraísos temos

no vazio de si inflas de ilusão
e epifania um Pai de aluvião
que cadencie carnificina e gozo

o ego cego que tem por coração
blindado e oco veloz do ai se esvazia
veloz esqueces crimes e imune à punição
desobrigas-te de tudo
e até do luto

 

Ademir Demarchi 



FAVELA

Meio-dia.
O morro coxo cochila.
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.
Um pé de meia faz exercícios no arame.
Vizinha da frente grita no quintal:
— João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora.
Mamoeiros estão de papo inchado.
Negra acocorou-se a um canto do terreiro.
Pôs as galinhas em escândalo.
Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.

À porta da venda
negro bocejou como um túnel.

 

Raul Bop 



Flor dos Santos

 

Santa Bárbara que nos livra do corisco.
São Bento que cura mordida de cobra,
São Gonçalo casador.

São Jorge que me cedeu o seu nome
pra meu pai me batizar,
que escolheu o seu dia
pra eu chegar nesse mundo,
que só não me deu seu cavalo
porque o pobre do bichinho
não podia descer da lua!

Pulei tanta tacha de engenho,
passei tanta correnteza,
conheci tanto perau fundo!

E você, meu anjo da guarda,
nunca me disse seu nome,
pra eu fazer um poeminha pra você!

 

Jorge de Lima



Let's Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that

                                     Torquato Neto



Memória

Em meu dedo
o teu dedal


(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)

Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir

Dalila Teles Veras



NA GARGANTA

 

Se me perguntares outra vez porque escrevo

gritarei contigo todo o meu poema reduzido:

Escrevo porque preciso

– tenho a alma entalada na garganta

e um coração refém dos meus ouvidos

isso é tudo.

 

Nic Cardeal 



NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás
a luz o telefone a sonegação
do leite da carne do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.

Como não cabe no poema
o operário que esmerila
seu dia de aço e carvão
nas oficinas escuras

— porque o poema, senhores,
está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

 

Ferreira Gullar

Antologia Poética



O Bicho

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

 

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

 

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

 

O bicho, meu Deus, era um homem.

 

Manuel Bandeira




O mundo que eu venci deu-me um Amor

O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.

O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.

O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.

Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...

 

                                          Mário Faustino 



PARA UM NEGRO


para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.


para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
                     o coração.

 

                   Adão Ventura 



POEMA DO AVESSO

 

O que há em mim

é a lenta preparação

do que há em ti

                    sombra segada

                    sangrada

                    e sagrada

                    até nos olhos

dos meninos que nasceram

                 sem olhos

 

vidência única

(vide o verso)

 

visão múltipla

(vede o anverso)

 

e tudo que está do outro lado

do espelho.

 

 

                                          Rubens Jardim




PONTA DAS ASAS

 

e se me fico assim
nessa espera doída de um abraço seu
dos que me acalentam
à borda do furacão
ou nessa angústia covarde
de que a ponta dos ossos de suas asas
arranhem minha alma já avariada

neste aguardo ansioso de sua língua fervente
a lamber meu corpo a me acalmar o sono
ou o medo pavor de que o bifurcado escaldante
queime arranque minha pele

e se me fico assim
com essas esperanças cegas
a me preparar para o pulo

 

Claudinei Vieira



TANTO ÓDIO, CARLOS

 

o mundo é grande

e tem extremos

 

tem estrelas e tem estrume

tem perfume e tem veneno

 

tem dias que a gente ama

tem dias que a gente briga

 

mundo mundo vasto mundo

mundo malo mundo bueno

 

não me chamo raimundo

mas algo estranho me intriga

 

como cabe tanto ódio

num caráter tão pequeno

 

Ademir Assunção

Risca Faca – São Paulo

Selo Demônio Negro

2021




um uivo

ah, essa coisa de fazer poesia
e trazer tantos lobos para fora do covil
e lobas, todas no cio,
e tantos e tantos vazios
ah, essa coisa vã que é fazer poesia
e que não fala, uiva
e chora e sangra
estrangeira e nativa
numa ilha igual a todas as outras ilhas…
ah, essa coisa inútil que é fazer poesia
e ser um desnudamento tão íntimo
que de tão íntimo desnudamento
é igual em todos os falantes
ah, coisa inevitável
que é fazer poesia

 

                                          Carolina Rieger 






Biografia do livro

 

Acariciar-te nervura de planta

nádegas de lisura com inscrições

de longes Jerusalens

dobras e alças em esconso

de fósseis e sabedorias

abro-te para apalpar-te

de pálpebras despertas fecho-te

para te possuir fetiche de neutralidade

se é que se mostra o que se decide

 

Se és livro me deixas além

me purificas das fezes

em que me mantinha a ignorância

abro tuas pálpebras com gana de amante

com o gozo da fertilidade

que só tu guardas no limite

de finas superfícies desdobráveis

 

Salomão Sousa




Colheita

Colha-me logo.
Colha-me, pois
sou um pano leve
que voa entre os pássaros
de longas asas coloridas
sem tempo e sem retorno.

Colha-me e prove-me
enquanto há clarões vermelhos
se estendendo nas varandas das casas
enquanto suas mãos
possam me alcançar.

 

Celso de Alencar 



2.

um dia de manhã sentei naquele chão

tão preto
tão morto

fechei os olhos garrada em seu sangue seco
e pensei em quem seria
quem foi
ele os invisíveis

abri
como uma refugiada de guerra
uma vaca magra na fila do abate

 

Nina Rizzi



RES
(Fragmento)


Lo real
con sus dos mil círculos
concéntricos
sus formas de agua
su gula de caos
desde la nada
lo real
corre(en)ti
es tu líquida morada
Lo real
con su aire espeso
sus sobras (pliegues) del cuerpo
lo incestuosolo injertado
a tiros de quema-ropa
lo real te provoca
te enfurece
Lo real
con su insecto de luz
se abre en piedra
con su faro nos conducecon
su furia nos enreda
Lo real - ¿crees? -
res
ist
e


Herbert Emanuel 



"anti-humano"

 

anti-homem-primeiro de abril,

homem cano, homem-milícia,

homem dano, homem-perícia,

homem ufano, homem-sevícia,

homem tirano, homem-polícia,

homem insano, homem-notícia,

homem engano, homem-malícia,

homem garrano, homem-inscícia,

homem profano, homem-icterícia,

homem miliciano, homem-puerícia,

homem palaciano, homem-sordícia,

homem inumano, homem-espurcícia,

homem americano, homem-imundícia,

homem antiafricano, homem-iniquícia,

peixes verdes, azuis e amarelos,

indóceis e insipientes, através

da névoa entoam seu nome:

homem psicopata, homem-arminha,

homem-aparência, homem-catástrofe.

esse anti-homem, armado

até os dentes, esvazia

qualquer poema.

*

by Ziul Serip, in "Olhar de Guernica" [inédito]

imagem: "Guernica" (desenho) by Pablo Picasso (1881/1973).



QUE PAÍS É ESTE?

Fragmento

 

Universidade Livre de Alvito

(Afonso Romano de Sant'Anna)

 

1

Uma coisa é um país,

outra um ajuntamento.

Uma coisa é um país,

outra um regimento.

Uma coisa é um país,

outra o confinamento.

 

Mas já soube datas, guerras, estátuas

usei caderno “Avante”

— e desfilei de tênis para o ditador.

Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”

e éramos maiores em tudo

— discursando rios e pretensão.

 

Uma coisa é um país,

outra um fingimento.

Uma coisa é um país,

outra um monumento.

Uma coisa é um país,

outra o aviltamento.

 

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça

em busca da especiosa raiz? ou deveria

parar de ler jornais

e ler anais

como anal

animal

hiena patética

na merda nacional?

 

Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo

comendo o que as traças descomem

procurando

o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso

que nos impeliu a errar aqui?

 

Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos

nacionais, como qualquer santo barroco

a rebuscar

no mofo dos papiros, no bolor

das pias batismais, no bodum das vestes reais

a ver o que se salvou com o tempo

e ao mesmo tempo

– nos trai

 

2

Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:

 

que o futuro a Deus pertence,

que Deus nasceu na Bahia,

que São Jorge é que é guerreiro,

que do amanhã ninguém sabe,

que conosco ninguém pode,

que quem não pode sacode.

 

Há 500 anos somos pretos de alma branca,

não somos nada violentos,

quem espera sempre alcança

e quem não chora não mama

ou quem tem padrinho vivo

não morre nunca pagão.

 

Há 500 anos propalamos:

este é o país do futuro,

antes tarde do que nunca,

mais vale quem Deus ajuda

e a Europa ainda se curva.

 

Há 500 anos

somos raposas verdes

colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento

com tempestades na boca,

sonhamos a paz da Suécia

com suíças militares,

vendemos siris na estrada

e papagaios em Haia,

nada nada congemina:

a senzalamos casas-grandes

e sobradamos mocambos,

bebemos cachaça e brahma

joaquim silvério e derrama,

a polícia nos dispersa

e o futebol nos conclama,

cantamos salve-rainhas

e salve-se quem puder,

pois Jesus Cristo nos mata

num carnaval de mulatas.

 

Este é um país de síndicos em geral

este é um país de cínicos em geral

este é um país de civis e generais.

Este é o país do descontínuo

onde nada congemina

e somos índios perdidos

na eletrônica oficina

Nada nada congemina:

 

a mão leve do político

com nossa dura rotina,

o salário que nos come e

nossa sede canina,

e a esperança que emparedam

a nossa fé em ruína,

placidez desses santos

e a nossa dor peregrina,

e nesse mundo às avessas

– a cor da noite é obsclara

e a claridez, vespertina.

 




 Curadoria:  Artur Gomes

Fulinaíma MultiProjetos

https://centrodeartefulinaima.blogspot.com/

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