olho de lince
para Tchello d´Barros
onde engendro
a Sagarana
invento
a Sagaranagem
entre a vertigem
e a voragem
na palavra
de origem
entre a língua
e a miragem
São
Bernardo e Diadema
mordendo: o vírus da linguagem
no olho de lince do poema
Artur Gomes
Pátria
A(r)mada
2ª Edição
revista e ampliada
Desconcertos
Editora - 2022
foto: Letícia Rocha
ANJOS
TARDIOS
Na palma da mão
a linha da vida
descostura a alma
em descompasso,
alinhava as asas
em pleno voo.
É preciso muita calma
na rota de colisão
entre a partida
e a chegada,
se, ao final,
o destino
nos trouxer
outra surpresa,
virando a mesa
para além das margens.
Na palma da mão,
na linha da vida,
remendos costumeiros
seguram nossas asas
bem comportadas.
Seremos
todos nós
- sem exceção -
humanos desafios
ou anjos tardios?
(Nic Cardeal, 20/09/2016 - poema integrante do
livro 'Sede de céu', editora Penalux, 2019, p. 153 -
imagem
do Pinterest)
Pano de Verônica
traçado por você
meu destino torto
ofuscado por seu brilho
meu passado morto
afogado em suas lágrimas
meu coração
arrancado de seus livros
meu gado eunuco
torturado em seus poemas
meu português caduco
esgotadas em seus campos
minhas armas de sedução
habitando seu lenço torpe
minha chuva inútil
escrito em seu caderno roto
meu verso fútil
negada aos meus enfermos
sua extrema unção
coroando minha fronte
seu espinho implícito
levando-me ao cadafalso
seu ato ilícito
sufocando meus sonhos
sua prisão
tecido em suas mãos
meu rosto exangue
pisado por seus pés
meu peito em sangue
colado por seus olhos
meu corpo em grãos.
Adriano Moura.
"Liquidificador: poesia para vita mina" pág. 30 (Imprimatur/7letras
2007)
DAS BIOGRAFIAS (1)
em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregam
para edificar os palácios dos reis.
Adão Ventura
Belo Itambé -MG
(1939-2004).
Poema Processo – Moacy Cirne
Selvagem
" enterrem meu coração
na curva do rio"
peço
como pediu um índio
que, estrangeiro,
sabia falar a língua
da minha flauta alma,
índia que sou,
selvagem
Se as pernas cruzo
social,
em vernissagens,
a alma é acocorada,
ouvido alerta
para os ruídos
quase nada
de uma selva
em que, matreiro,
o inimigo surja.
Se, requintada,
canapés mordisco,
Dama da Corte,
a alma antropofagicamente,
rosna
o seu pedaço de caça.
Bebo na concha
das mãos
água riacho
quando levemente
seguro a taça
em que me servem
a mesma água.
O banho perfumado
em sabonete e shampoos,
é, apenas,
o verniz
que descascado,
desvenda o banho,
que, em meu rio,
limpo o corpo
com folhas
e flores abertas
madrugadas.
Jamais estive grávida,
mas prenhe;
nunca me nasceram filhos,
os pari,
quando meu grito
primevo
se fez soluço
ao agarrá-los,
fera,
e lambê-los
crias, curumins.
Cheiro, disfarçada,
o ar desses salões
e o meu faro
é faro de onça
na espreita
do perigo,
como só índio
e animal
sabem espreitar.
Meu grito de guerra
ecôa no silêncio,
se palavra cambaia
agride a minha
escuta
e não confundo
doce, àquela que amarga,
mesmo que enfeitada
em pétala de flor.
Sei exatamente
o curso do meu rio,
guia seguro,
mateiro,
meu irmão,
que me levará
a salvo
à clareira
em que adormeço.
Por isso peço:
"enterrem meu coração
na curva do rio".
E meu rio
é esse Paraíba
que se disfarça civilizado,
já que, em cidade corre,
mas que é,
como todo rio,
o que desliza na selva
em que algum dia
nasci.
Lucia
Miners
O COISA RUIM
me querem manso
cordeiro
imaculado
sangrado
no festim dos canibais
me querem escravo
ordeiro
serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal
me querem rato
acuado
rabo entre as pernas
medroso
um verme, pegajoso
mas eu sou osso
duro de roer
caroço
faca no pescoço
maremoto, tufão, furacão
mas eu sou cão
lato
mordo
arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade
qual nero
devasto o lero lero
entro em campo
desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato
Ademir Assunção (do
livro Zona Branca, 2001)
foto: Parícia Bueno
Nada nos pertence
Nada nos pertence.
Nada mesmo.
Nem a rua com suas calçadas,
as casas numeradas,
um quarto assombrado,
cinto, vestido, sapato, fivela,
passado.
Nada nos pertence...
Nada mesmo...
Nem o carro com suas rodas,
as placas numeradas,
um banco desocupado,
rádio, bebida, perfume, cinzeiro,
passado.
Nada nos pertence,
nada mesmo!
Nem a agenda com horas marcadas,
as páginas numeradas,
um nome riscado,
caneta, desenhos, arame, papel,
passado.
Nada nos pertence.
Nada mesmo.
Nem o amor com seus cupidos,
as cartas numeradas,
um baralho rasgado,
rei, ouro, copa, coringa,
passado.
Nada nos pertence...
Nada mesmo...
Nem a rua com suas pedras,
nem o bosque com seus anjos,
nem o coração roubado.
Nada nos pertence,
nem mesmo o passado!
Joilson
Bessa
NÓS
poema vencedor do I FestCampos de Poesia Falada - 1999
Senta,
Vai alta a madrugada
E não demora, a manhã vai entrar
Pelas frestas da casa,
Como leite derramado.
Faz tempo que dividimos a comida,
A roupa limpa,
Que contabilizamos dívidas
E regamos com zelo de parteiras,
A flor do nosso sentimento
- rara orquídea multicor –
Vem, senta,
As crianças dormem de janelas abertas,
Não há perigo algum,
Podemos arriar nossas espadas,
Afrouxar nossas defesas
Por instantes,
Pelo menos, até que o dia reponha suas armadilhas.
Olha, as nuvens são alfaias,
Mobílias do céu.
Temos um Deus nômade
Que nos defende à distância
E é impressionante essa galáxia sobre nós,
Enquanto contamos o cobre
que comprará arroz e trigo
Quando amanhecer.
- há muito que nos alimentamos
De aurora e pão –
Senta, esquece a lâmina do futuro,
É hora de içar as imensas velas do amor,
Espalhar no chão nossas roupas íntimas,
Mergulhar no delírio,
O mar que trazemos escondido
Há tanto tempo.
Fernando Leite Fernandes
Regressar
porque se é partida e fuga
e sempre deixamos alguém à espera
É rocha e água este tempo
de areias difusas a paisagem
represada na garrafa
E o gênio à espera
à espera
de caridosas mãos que o desarrolhem
e o tornem eterno e faça-se a história
Que são os anos para quem
vive sob permanente encantamento?
Que é da existência
quando desfeita a paisagem?
Dalila Teles Veras
O Mundo que eu
Venci
Deu-me um Amor
O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
Mário Faustino, in
'Antologia Poética'
O avesso de Abel
I
Alma tem fratura.
Exposta.
Mas não pode imobilizar.
Fratura de alma precisa de exercício.
Dor de alma é coletiva.
O choro é uníssono.
Por isso o estilhaço não calcificado
do osso do meu irmão Caim,
que carpe sozinho no mundo
o mato de miséria e desespero, me (co) move.
Não quero meus ossos no lugar.
O avesso dos outros me humaniza
e me ensina a lidar com minhas dores e monstros.
II
Meus monstros são meus devires:
Devenho planta Devenho bicho
Devenho água Devenho deus.
Sou do tipo que não se completa,
Que vive à borda,
Apenas tange a realidade das coisas.
Nunca as tem.
Quem gosta de ter não devém.
Devir é trânsito.
É estar entre o humano e o cão
Sem chegar a nenhum.
Sou o que nunca é sendo tudo o que alcanço.
Não imito. Avanço.
De Van Gogh,
Sou a orelha decepada
Na noite estrelada.
Sou a coprofilia poética da cela de Sade
No frio,
Me cubro Com o manto de Bispo do Rosário.
Escuto, na surdez da noite,
A sinfonia heroica de Beethoven,
Devorando os insetos em vez de matá-los.
Sou eu próprio a ovelha imolada
No altar de Apolo, por ser todo Dionísio.
Atrás das grades onde me encarceram,
Uiva pra lua cheia cheia meu devir lobisomem.
Podem prender meu corpo, Mas não encarcerar
minha alma.
Adriano
Moura
Let's Play That
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that
Torquato
Neto
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