Lispector
Certo ar que não é claro
nem escuro - que é de sol e chuva
ar que não chega ao vento
mas entreabre a porta
um palmo
ou a encosta sem fechar
igual àquela, de Duchamp
hesitante
parada no meio do caminho
interrogativa entre dois portais
em 1927: porta de saída
de entrada, de comunicação?
Armando
Freitas Filho
[Duplo cego]
Subversiva
A
poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.
Ferreira
Gullar
Jura secreta 65
esse teu olho que me olha
azul safira
ou mesmo verde
esmeralda fosse
pedra - pétala rara
carne da matéria doce
ou mesmo apenas fosse
esse teu olho que me molha
quando me entregas do mar
toda alga que me trouxe
Artur Gomes
Foto.Poesia - KINO3
Juras Secretas
Editora Penalux – 2018
https://www.facebook.com/cinevideocurtas
por onde andará Macunaíma
era uma vez um mangue
e por onde andará macunaíma
na tua carne no teu sangue
na medula no teu osso
será que ainda existe
algum vestígio de macunaíma
na veia do teu pescoço?
Federico Baudelaire
foto.poesia - KINO3
https://www.facebook.com/cinevideocurtas
minha dor passeia
pelos manguezais de angra
a flor do mangue também sangra
Artur Fulinaíma
foto.poesia
https://fulinaimagens.blogspot.com/
A farsa do amor
1
olho seco de cobra
morta —
chuva muito fina
agulhas
na carne viva
& você diz Amor
(velha senha secreta)
lambe as feridas
com língua de lixa
& tranca o trinco da jaula
2
não tente esse truque
outra vez
seja mais suja
meu doce amor
espete um alfinete
no olho do gafanhoto
toque fogo
nas asas de um anjo
capture vivo um ET
& o leve a um talkshow
mas não tente prender os lobos
quando for lua cheia
Ademir Assunção
sampa, 13.11.97
Do livro Zona Branca
A poesia é meta física
meta quântica
Itaipu é um paraíso
dentro do que restou
da Mata Atlântica
Gigi Mocidade
www.coletivomacunaimadecultura.blogspot.com
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro ou está por
fora
quem está por fora
não sustenta um olhar que
demora
diante do meu centro
este poema me olha
Ali
se Alice ali se visse
quando Alice viu e não disse
se ali Alice dissesse
quanta palavra veio e não desce
ali bem ali dentro da Alice
só Alice com Alice ali se
parece
Paulo Leminski
Canção
amiga
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
no jeito mais natural
dois caminhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Carlos
Drummond de Andrade
despejo
“Se
morar é um direito ocupar é um dever.” (MTST)
a polícia se aproxima
há que expulsar os invasores
que voltem às ruas
aos vãos das pontes
morar não é para amadores
foi breve a esperança
dos sobrantes
e longa a noite de maldades
há um rastro de guerra pelas ruas
e um choro miúdo se perde
entre ruínas
o pavor já silencia
alguns não morrem
sob as patas dos cavalos
Helena
Ortiz
foto: Malu Pera
exilados construtores
do amanhã
poesia.
ilha de línguas novas
refúgio das últimas
rosas. de abandono vasto
veloz des - embaraço.
distante do céu
do colapso do rastro.
nossos des - troços
aqui
re - uni.
da flama
suspiro último
ilha
poesia
: líquida
língua
de letras
leves
ao mar
in - certo
sem
trégua
en - tregue
( aqui não temos
horas - nomes - glórias
estamos sós
e tudo é novo
entre os nós )
o sorriso da fome
nos dentes do Sol
antes do poema
o labor ósseo da Perda
o corpo escuro da noite
( limpar as gretas imundas
entre os azulejos do banheiro )
o luzir róseo do Salto
a carne macia das nuvens
antes do gozo
o furor fálico da Dor
o rosto azul da rua
( deter o avanço dos vermes
diluir a solidez das pedras )
o fluir rubro do Rasgo
a pele áspera da ninfa
antes do poema
o afago do açoite
o enfado da fome
um pássaro preto
às margens do vício
( colher cebolas selvagens
fundar cidades lascivas )
um grito seco
suspenso no Tempo
garbo gomes
— em Rio Iguaçu
trilha
[sil guimarães]
o trem vem
o homem entra
a janela engole o homem
as nuvens passam
os telhados passam
os postes passam
os bois passam
as andorinhas voam
as árvores passam
os olhos dos meninos passam
a paisagem passa
a paisagem idem
o trem para
o homem desce
o trem vai
o homem vai atrás
a mala cai
o homem pega a mala
o trem volta
o homem para
o trem chega
a mala procura o homem
a mala entra no trem
[ imagem filipe castro jimmy ]
NA ETERNIDADE
Não posso considerar que a vida
seja apenas um lapso de eternidade,
senão a própria eternidade
brincando de momentos
num breve 'continuum' de
espaço/tempo.
Daqui a pouco
finalmente abrirei os olhos
para além da forma
e já estarei lá (ou bem aqui),
à beira do Nada,
sendo, enfim, o Tudo no Todo.
Não,
não me bastam paredes,
portas fechadas,
janelas entreabertas
entre cortinas
balançando ao vento.
Minhas necessidades são intensas:
quero ventanias subjetivas
como cantigas maduras
em vozes velozes
que me levem para fora
deste corpo contraposto
que me enjaula a alma
(muito a contragosto).
Quero asas longas e audazes
que me naveguem por outros ares,
onde estrelas sejam lanternas
de abrir caminhos,
ensinando os rumos pelo aconchego
dos braços da Via-Láctea.
Quero a intenção sublime
de um passarinho que,
no construir de um simples ninho,
encontra a certeza de seu destino.
Não,
não me bastam palavras desbastadas
no folhear longínquo
de um dicionário discricionário,
minha sede se resume
ao mergulho sem nome e sem destino
em uma Fonte que ainda não sei o nome
mas, ao que parece,
permeia o meu destino.
Não posso considerar que este caminho
seja tão somente mais um caminho,
senão o próprio construtor menino
brincando de criar formas
neste sonho adormecido de viver.
Não,
façamos de conta que é hora de
acordar,
tocam os sinos na madrugada,
daqui a pouco o voo será completo:
recolheremos nossas asas
o sonho estará desperto.
Enfim, eu e tu,
tu e ele,
juntos,
todos nós,
estaremos em 'casa',
vestindo, mais uma vez,
a 'roupa' livre da eternidade.
(Nic
Cardeal, 01/12/2015 - * poema integrante do livro 'Sede de céu',
Penalux/2019, pp. 37-39)
FlorBela
olhando o manequim
dentro de mim
vejo o outro lado da janela
Foto: Letícia Rocha
Texto: Artur Gomes
Manequim: Micaela Albertini
Kino3
https://www.facebook.com/cinevideocurtas
A carnadura do mal
Disseca-se
o
corpo vivo
em
praça pública.
O
que se vê:
matéria
fétida,
antes
oculta.
Uns
observam,
paralisados,
como
num transe.
Outros
escarram
seu
gozo-bílis
verdeamarelo.
O
que fazer
com
a carne pútrida
que
se fez verbo?
Edelson Nagues
transe
o vestido branco
transparente
que vasa na noite de lua
todo raio do relâmpago
luz de fogo e trovoada
era noite de outono
21 de março
como se fosse hoje
e sob as rendas brancas
ela me mostra os poros
como se fossem pelos
num sinal de alerta
me avisando sobre a porta
entre/aberta
e nos porões da pele
me convidasse entrar
Federika Lispector
www.fulinaimargens.blogspot.com
Federika Bezerra a Porta Bandeira
que borTou Olivácio Doido
Em
mil novecentos e vinte e cinco
na noite de orgias satanazes
um raio de trovão incandescente
rachou a Igreja em Goytacazes
um vulto do despacho então desceu
movido por farol de grande luz
tocou na pedra quebrou cruz
a Rainha do Fogo dessa gente
Federika
de ouro azul e prata
na paorta da igreka foi parida
criada pelo Padre Olivácio
que logo depois lançou na vida
aos cindo de idade encantada
foi pega masturbando em sacristia
por causa de um sonho com o príncipe
DuBoi da mais sagrada putaria
Expulsa
da cidade foi pra longe
cresceu entre os jardins de JardiNÒpolis
mas se você pergunta Fróes Explica:
- o seu palácio agora é em Petrópolis
Aos
dezenove plena de alegria
conheceu Gigi da Bateria
na porta do Beco de Satã
na festa federal do Bar da Lama
a Deusa dos Lençóis de toda cama
sorrindo para ver como é que fica
dá um corte na história
inverte o drama
e transforma Ouro Preto em Vila Rica
e assim vamos cantar em verso e prosa
a saga dessa Deusa Iansã
que em busca da mordida na maçã
sonhava encontrar Guimarães Rosa
Viemos
do SerTão para os seus braços
porque a Mocidade Independente
é a mais fina e pura Flor do Lácio
afilhada do secular Padre Miguel
e fiel ao seu pai Padre Olivácio
e para completar a grande roda
trazemos o cacique Pau BraZil
o centenário Oswald de Andrade
filho da paulicéia que pariu!
Passando pelas bandas do Catete
dançando na maior intensidade
macumba com o índio brasileiro
nossa Ex-Cola campeã da liberdade
Federika engravidou o grafiteiro
do famoso cacete Samaral
que escrevia pelos muros da cidade:
Mocidade já ganhou o CArnaval!
e assim vamos cantar na grande roda
tudo o que deu e o que não deu
o dia que um pastor bem collorido
pensou ser pai de santo e se fudeu!
Federico baudelaire
viagens insanas – mestre sala da
Mocidade Independente de Padre Olivácio – A Escola de Samba Oculta No InConsciente Coletivo
https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/
ferido
de morte
me deixe quieto
no meu canto
não toque no rádio
não mexa na ferida
nem provoque o sonho
deixe a noite
acontecer sem pressa
não fale meu nome
não atravesse a ponte
fique onde estás
e me deixe entregue
ao meu silêncio
hoje,
eu calo por nós dois
Ademir
Antonio Bacca
FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE
faça sol ou faça tempestade,
meu
corpo é fechado
por esta pele negra.
faça sol ou faça tempestade,
meu
corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.
faça sol
ou
faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
PARA UM NEGRO
para um
negro
a cor da
pele
é uma sombra
muitas vezes
mais forte
que um soco.
para um
negro
a cor da
pele
é uma faca
que atinge
muito mais
em cheio
o coração.
EU, PÁSSARO PRETO
eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.
NEGRO FORRO
minha carta
de alforria
não me deu
fazendas,
nem dinheiro
no banco,
nem bigodes
retorcidos.
minha carta
de alforria
costurou
meus passos
aos
corredores da noite
de minha
pele.
PRETO DE
ALMA BRANCA
LIGEIRAS
CONCEITUALIZAÇÕES
o preto de alma branca
e seu saco de capacho.
o preto de alma branca
e seus culhões de cachorro.
o preto de alma branca
e sua cor de camaleão.
o preto de alma branca
e o seu sujar na entrada.
o preto de alma branca
e o seu cagar na saída.
o preto de alma branca
e o seu sangue de barata.
cada vez mais distante
do corpo da Grande Mãe-África.
§
Agora
É hora
de amolar a foice
e cortar o pescoço do cão.
— Não deixar que ele rosne
nos quintais
da África.
É hora
de sair do gueto/eito
senzala
e vir para a sala
— nosso lugar é junto ao Sol.
§
Comensais
A minha pele negra
servida em fatias
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.
§
Limite
e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.
e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.
e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.
e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.
e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.
a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.
§
Das biografias (1)
em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.
carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.
mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis .
§
Encantamento
Você agora
é arco-íris
sol
de Três Barras
cristal
de São Gonçalo do Rio das Pedras
- Um caminhão transporta estrelas
do Pico do Itambé
- Um raio corta de fora a fora
os céus do Serro
§
Poemas da morte de um pai
a José Ferreira dos Reis (1905 - 1988)
- Que cesse o barulho das enxadas,
das cantigas de eito
- que a madrinha da tropa
interrompa o curso
de seus passos
em territórios do Serro,
Santo Antônio do Itambé,
Baguari, Folha Larga,
Itapanhoacanga
e São Miguel & Almas de Guanhães.
E José,
novamente menino,
descalço, chapeuzinho de palha,
aguilhada na mão
a se encontrar
com seu Teodoro da Fazenda.
§
Zumbi
Eu-Zumbi
Rei de Palmares
tenho terreiros e tambores
e danço a dança do Sol.
Eu-Zumbi enfrento o vento
que ainda tarda
dessas cartas de alforria.
Eu-Zumbi jogo por terra
a caneta de ouro
de todas as Leis-Áureas.
Eu-Zumbi
Rei de Palmares
Tenho terreiros
e tambores
e danço a dança do Sol.
Adão Ventura Ferreira Reis nasceu
em Santo Antonio do Itambé, Distrito do Serro, MG, em 1946. Advogado, formado
pela Universidade Federal de Minas Gerais, autor de livros de poesia, sendo os
primeiros: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul,(Belo
Horizonte: Edições Oficina, 1970), As musculaturas do Arco do Triunfo (Belo
Horizonte: Editora Comunicação, 1976). Já participou de antologias poéticas em
vários países. Teve um de seus poemas incluído na antologia Os Cem Melhores
Poemas Brasileiros do Século, organizada por Italo Moriconi ( Editora Objetiva
- SP).
Fulinaíma MultiProjetos
www.centrodeartefulinaima.blogspot.com
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