domingo, 4 de dezembro de 2022

Mostra Visual De Poesia Brasileira - Poesia em Movimento


Lispector


Certo ar que não é claro

nem escuro - que é de sol e chuva

ar que não chega ao vento

mas entreabre a porta

um palmo

ou a encosta sem fechar

igual àquela, de Duchamp

hesitante

parada no meio do caminho

interrogativa entre dois portais

em 1927: porta de saída

de entrada, de comunicação?

 

Armando Freitas Filho

[Duplo cego]



 

Subversiva

 

A poesia
Quando chega
Não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
De qualquer de seus abismos
Desconhece o Estado e a Sociedade Civil
Infringe o Código de Águas
Relincha
Como puta
Nova
Em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
Reconsidera: beija
Nos olhos os que ganham mal
Embala no colo
Os que têm sede de felicidade
E de justiça.
E promete incendiar o país.

 

Ferreira Gullar

 


Jura secreta 65

 

esse teu olho que me olha

azul safira

ou mesmo verde

esmeralda fosse

pedra - pétala rara

carne da matéria doce

ou mesmo apenas fosse

esse teu olho que me molha

quando me entregas do mar

toda alga que me trouxe

 

Artur Gomes

Foto.Poesia - KINO3

Juras Secretas

Editora Penalux – 2018

https://www.facebook.com/cinevideocurtas




 por onde andará Macunaíma


era uma vez um mangue

e por onde andará macunaíma

na tua carne no teu sangue

na medula no teu osso

será que ainda existe

algum vestígio de macunaíma

na veia do teu pescoço?

 

Federico Baudelaire

foto.poesia - KINO3

https://www.facebook.com/cinevideocurtas





minha dor passeia

pelos manguezais de angra

a flor do mangue também sangra

 

Artur Fulinaíma

foto.poesia

https://fulinaimagens.blogspot.com/



 

A farsa do amor

 

1

 

olho seco de cobra
morta —
chuva muito fina
agulhas
na carne viva

& você diz Amor
(velha senha secreta)

lambe as feridas
com língua de lixa

& tranca o trinco da jaula

 

2

 

não tente esse truque
outra vez

seja mais suja
meu doce amor

espete um alfinete
no olho do gafanhoto

toque fogo
nas asas de um anjo

capture vivo um ET
& o leve a um talkshow

mas não tente prender os lobos
quando for lua cheia

 

Ademir Assunção 
sampa, 13.11.97

Do livro Zona Branca 



A poesia é meta física
meta quântica
Itaipu é um paraíso
dentro do que restou
      da Mata Atlântica

 

Gigi Mocidade

www.coletivomacunaimadecultura.blogspot.com




quando olho nos olhos

sei quando uma pessoa

está por dentro ou está por fora

quem está por fora

não sustenta um olhar que demora

diante do meu centro

este poema me olha

 

Ali

se Alice ali se visse

quando Alice viu e não disse

se ali Alice dissesse

quanta palavra veio e não desce

ali bem ali dentro da Alice

só Alice com Alice ali se parece

 

                                      Paulo Leminski



Canção amiga

 

Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,

todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua

que passa em muitos países.

Se não me vêem, eu vejo

e saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

como quem ama ou sorri.

no jeito mais natural

dois caminhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras

E tornei outras mais belas.

Eu  preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.

 

Carlos Drummond de Andrade



despejo

“Se morar é um direito ocupar é um dever.”                     (MTST)

a polícia se aproxima

há que expulsar os invasores

que voltem às ruas

aos vãos das pontes

morar não é para amadores

 

foi breve a esperança dos sobrantes

e longa a noite de maldades

há um rastro de guerra pelas ruas

e um choro miúdo se perde

entre ruínas

 

o pavor já silencia

alguns não morrem

sob as patas dos cavalos

 

Helena Ortiz

foto: Malu Pera 



exilados construtores
do amanhã



poesia.
ilha de línguas novas
refúgio das últimas
rosas. de abandono vasto
veloz des - embaraço.
distante do céu
do colapso do rastro.

nossos des - troços
aqui
re - uni.

da flama
suspiro último

ilha
poesia
: líquida
língua

de letras
leves
ao mar
in - certo
sem
trégua
en - tregue

( aqui não temos
horas - nomes - glórias

estamos sós
e tudo é novo
entre os nós )


o sorriso da fome

nos dentes do Sol

 

antes do poema

o labor ósseo da Perda

o corpo escuro da noite

( limpar as gretas imundas

entre os azulejos do banheiro )

o luzir róseo do Salto

a carne macia das nuvens

antes do gozo

o furor fálico da Dor

o rosto azul da rua

( deter o avanço dos vermes

diluir a solidez das pedras )

o fluir rubro do Rasgo

a pele áspera da ninfa

antes do poema

o afago do açoite

o enfado da fome

um pássaro preto

às margens do vício

( colher cebolas selvagens

fundar cidades lascivas )

um grito seco

suspenso no Tempo

 

garbo gomes 

— em Rio Iguaçu




trilha

[sil guimarães]

 

o trem vem

o homem entra

a janela engole o homem

as nuvens passam

os telhados passam

os postes passam

os bois passam

as andorinhas voam

as árvores passam

os olhos dos meninos passam

a paisagem passa

a paisagem idem

o trem para

o homem desce

o trem vai

o homem vai atrás

a mala cai

o homem pega a mala

o trem volta

o homem para

o trem chega

a mala procura o homem

a mala entra no trem

 

[ imagem filipe castro jimmy ]



NA ETERNIDADE

 

Não posso considerar que a vida

seja apenas um lapso de eternidade,

senão a própria eternidade

brincando de momentos

num breve 'continuum' de espaço/tempo.

 

Daqui a pouco

finalmente abrirei os olhos

para além da forma

e já estarei lá (ou bem aqui),

à beira do Nada,

sendo, enfim, o Tudo no Todo.

 

Não,

não me bastam paredes,

portas fechadas,

janelas entreabertas

entre cortinas

balançando ao vento.

 

Minhas necessidades são intensas:

quero ventanias subjetivas

como cantigas maduras

em vozes velozes

que me levem para fora

deste corpo contraposto

que me enjaula a alma

(muito a contragosto).

 

Quero asas longas e audazes

que me naveguem por outros ares,

onde estrelas sejam lanternas

de abrir caminhos,

ensinando os rumos pelo aconchego

dos braços da Via-Láctea.

 

Quero a intenção sublime

de um passarinho que,

no construir de um simples ninho,

encontra a certeza de seu destino.

 

Não,

não me bastam palavras desbastadas

no folhear longínquo

de um dicionário discricionário,

minha sede se resume

ao mergulho sem nome e sem destino

em uma Fonte que ainda não sei o nome

mas, ao que parece,

permeia o meu destino.

 

Não posso considerar que este caminho

seja tão somente mais um caminho,

senão o próprio construtor menino

brincando de criar formas

neste sonho adormecido de viver.

 

Não,

façamos de conta que é hora de acordar,

tocam os sinos na madrugada,

daqui a pouco o voo será completo:

recolheremos nossas asas

o sonho estará desperto.

Enfim, eu e tu,

tu e ele,

juntos,

todos nós,

estaremos em 'casa',

vestindo, mais uma vez,

a 'roupa' livre da eternidade.

 

(Nic Cardeal, 01/12/2015 - * poema integrante do livro 'Sede de céu', Penalux/2019, pp. 37-39)




FlorBela

 

olhando o manequim

dentro de mim

vejo o outro lado da janela

 

Foto: Letícia Rocha

Texto: Artur Gomes

Manequim: Micaela Albertini

Kino3

https://www.facebook.com/cinevideocurtas



A carnadura do mal

 

Disseca-se

o corpo vivo

em praça pública.

 

O que se vê:

matéria fétida,

antes oculta.

 

Uns observam,

paralisados,

como num transe.

 

Outros escarram

seu gozo-bílis

verdeamarelo.

 

O que fazer

com a carne pútrida

que se fez verbo?

 

Edelson Nagues


 

transe

 

o vestido branco
transparente
que vasa na noite de lua
todo raio do relâmpago
luz de fogo e trovoada
era noite de outono
21 de março
como se fosse hoje
e sob as rendas brancas
ela me mostra os poros
como se fossem pelos
num sinal de alerta
me avisando sobre a porta
entre/aberta
e nos porões da pele
me convidasse entrar

Federika Lispector

www.fulinaimargens.blogspot.com


 

Federika Bezerra a Porta Bandeira

que borTou Olivácio Doido



Em
mil novecentos e vinte e cinco
na noite de orgias satanazes
um raio de trovão incandescente
rachou a Igreja em Goytacazes
um vulto do despacho então desceu
movido por farol de grande luz
tocou na pedra quebrou cruz
a Rainha do Fogo dessa gente

 

Federika
de ouro azul e prata
na paorta da igreka foi parida
criada pelo Padre Olivácio
que logo depois lançou na vida
aos cindo de idade encantada
foi pega masturbando em sacristia
por causa de um sonho com o príncipe
DuBoi da mais sagrada putaria

 

Expulsa
da cidade foi pra longe
cresceu entre os jardins de JardiNÒpolis
mas se você pergunta Fróes Explica:
- o seu palácio agora é em Petrópolis

 

Aos
dezenove plena de alegria
conheceu Gigi da Bateria
na porta do Beco de Satã
na festa federal do Bar da Lama
a Deusa dos Lençóis de toda cama
sorrindo para ver como é que fica
dá um corte na história
inverte o drama
e transforma Ouro Preto em Vila Rica

 

e assim vamos cantar em verso e prosa
a saga dessa Deusa Iansã
que em busca da mordida na maçã
sonhava encontrar Guimarães Rosa

 

Viemos
do SerTão para os seus braços
porque a Mocidade Independente
é a mais fina e pura Flor do Lácio
afilhada do secular Padre Miguel
e fiel ao seu pai Padre Olivácio

e para completar a grande roda
trazemos o cacique Pau BraZil
o centenário Oswald de Andrade
filho da paulicéia que pariu!

 

Passando pelas bandas do Catete
dançando na maior intensidade
macumba com o índio brasileiro
nossa Ex-Cola campeã da liberdade
Federika engravidou o grafiteiro
do famoso cacete Samaral
que escrevia pelos muros da cidade:
Mocidade já ganhou o CArnaval!

 

e assim vamos cantar na grande roda
tudo o que deu e o que não deu
o dia que um pastor bem collorido
pensou ser pai de santo e se fudeu!

 

Federico baudelaire

viagens insanas – mestre sala da Mocidade Independente de Padre Olivácio – A Escola de Samba Oculta No InConsciente Coletivo

https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/ 



 

ferido de morte

 

me deixe quieto

no meu canto

 não toque no rádio

não mexa na ferida

nem provoque o sonho

 

deixe a noite

acontecer sem pressa

 não fale meu nome

não atravesse a ponte

 

fique onde estás

e me deixe entregue

ao meu silêncio

 

hoje,

eu calo por nós dois

 

Ademir Antonio Bacca

 


FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE

 

faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

 

faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é cercado
por estes muros altos,

 currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.

 

faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

 

 

PARA UM NEGRO

 

para um negro

a cor da pele

é uma sombra

muitas vezes mais forte

que um soco.

para um negro

a cor da pele

é uma faca

que atinge

muito mais em cheio

o coração.

 

EU, PÁSSARO PRETO

 

eu,

pássaro preto,

cicatrizo

queimaduras de ferro em brasa,

fecho o corpo de escravo fugido

e

monto guarda

na porta dos quilombos.

 

NEGRO FORRO

 

minha carta de alforria

não me deu fazendas,

nem dinheiro no banco,

nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria

costurou meus passos

aos corredores da noite

de minha pele.

 

PRETO DE
ALMA BRANCA
LIGEIRAS
CONCEITUALIZAÇÕES


o preto de alma branca
e seu saco de capacho.

o preto de alma branca
e seus culhões de cachorro.

o preto de alma branca
e sua cor de camaleão.

o preto de alma branca
e o seu sujar na entrada.

o preto de alma branca
e o seu cagar na saída.

o preto de alma branca
e o seu sangue de barata.

cada vez mais distante
do corpo da Grande Mãe-África.


§

Agora

É hora
de amolar a foice
e cortar o pescoço do cão.

— Não deixar que ele rosne
nos quintais
da África.

É hora
de sair do gueto/eito
senzala
e vir para a sala
— nosso lugar é junto ao Sol.

§

Comensais

A minha pele negra
servida em fatias
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.

§

Limite

e quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

e quanto a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

e quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

a palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.

§


Das biografias (1)


em negro
teceram-me a pele.
enormes correntes
amarram-me ao tronco
de uma Nova África.

carrego comigo
a sombra de longos muros
tentando impedir
que meus pés
cheguem ao final
dos caminhos.

mas o meu sangue
está cada vez mais forte,
tão forte quanto as imensas pedras
que os meus avós carregaram
para edificar os palácios dos reis .

§

Encantamento

Você agora
é arco-íris
sol
de Três Barras
cristal
de São Gonçalo do Rio das Pedras
- Um caminhão transporta estrelas
do Pico do Itambé
- Um raio corta de fora a fora
os céus do Serro

§

Poemas da morte de um pai


                a José Ferreira dos Reis (1905 - 1988)

- Que cesse o barulho das enxadas,
das cantigas de eito
- que a madrinha da tropa
interrompa o curso
de seus passos
em territórios do Serro,
Santo Antônio do Itambé,
Baguari, Folha Larga,
Itapanhoacanga
e São Miguel & Almas de Guanhães.

E José,
novamente menino,
descalço, chapeuzinho de palha,
aguilhada na mão
a se encontrar
com seu Teodoro da Fazenda.

§


Zumbi


Eu-Zumbi
Rei de Palmares
tenho terreiros e tambores
e danço a dança do Sol.

Eu-Zumbi enfrento o vento
que ainda tarda
dessas cartas de alforria.

Eu-Zumbi jogo por terra
a caneta de ouro
de todas as Leis-Áureas.

Eu-Zumbi
Rei de Palmares
Tenho terreiros
e tambores
e danço a dança do Sol.

 

Adão Ventura Ferreira Reis nasceu em Santo Antonio do Itambé, Distrito do Serro, MG, em 1946. Advogado, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, autor de livros de poesia, sendo os primeiros: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul,(Belo Horizonte: Edições Oficina, 1970), As musculaturas do Arco do Triunfo (Belo Horizonte: Editora Comunicação, 1976). Já participou de antologias poéticas em vários países. Teve um de seus poemas incluído na antologia Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, organizada por Italo Moriconi ( Editora Objetiva - SP).





Fulinaíma MultiProjetos

www.centrodeartefulinaima.blogspot.com


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