eu gostava mais de nós antes, amor
eu gostava mais quando passávamos as tardes de
domingo na cama
nesse tempo sonhávamos alto
e ao voltar um para o outro vínhamos trazendo nas
mãos o fogo roubado dos deuses
.
foi da tua boca que ouvi pela primeira vez sobre
as uvas que crescem nos vinhedos, em pleno deserto da patagônia
imaginei tudo em detalhes
o céu amplo
o fruto se abrindo como carne
a carne sendo devastada pela noite, num fulgor de
estrelas
.
eu gostava mais quando bebíamos vinho barato, em
taça de vidro. tu às vezes derramavas no meu ventre
era lindo ver-te bebendo dali, do abismo da minha
pele
era lindo pensar que continuarias bebendo de mim
sempre
supor que, mesmo se eu dissesse que nesse vinho
havia dissolvido a cantarella da lucrécia bórgia
mesmo assim continuarias bebendo
morrendo - por amor ao meu corpo
.
eu gostava mais de mim. de ti. de nós. gostava
mais quando ouvíamos o que quer que fosse da boca um do outro
tu me falavas a respeito da maldição que um dia
haverá de recair sobre minha família
minha casa
minha posteridade numerosa
como se estivesse ouvindo último homem vivo sobre
a terra
assim eu te ouvia, tua voz ao meu ouvido
e tu gozando dentro de mim
---
mar becker
em: para a série amar, ruir, que imagino como uma
plaquete. material em trabalho, 2019
múltiplas poéticas viagens metafóricas por realidades reinventadas pelo serTão de cada um
sábado, 11 de março de 2023
mar becker
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