o amor
é um barco bêbado
depois da chuva
naufragado frente ao cais
em Ubatuba
Artur Gomes
www.fulinaimagens.blogspot.com
"avalanche"
posicionar o corpo de joelhos: o tronco voltado
para a frente a escova de dentes pela metade
dentro da garganta todo dia depois do almoço
os cabelos amarrados a maneira de abafar os
ruídos e de esconder os laxantes debaixo das
meias sentir a tarde definhando carne adentro
e os ossos da bacia se encaixando nos dedos
ver estrelas ao final do dia as paredes escuras
rodando o suor frio rodando voltas ao pescoço
onde as saboneteiras já despontam delicadas
como ficam no colo das meninas bonitas essa
fraqueza nas pernas suspirar de fascínio entre
os dois lábios e a acidez impregnada na úvula
morrer à frente do espelho em um único sopro
(Amanda
Vital)
azul
estranhos, percebo, nossos dias
tempo de fingir que não, que sim
tempo de cadeados em latas de lixo
lanças nos muros, nas praças, na boca
bombas lacrimogêneas, gritos, despejos
tempo de grades na alma e nas janelas
tempo de falar de futuro nos bancos
tempo de não falar do passado
tempo de arder tudo que vai
entre a lua e este pedaço de carne
Tarso de Melo
de Caderno inquieto, 2012
Literatura Comparada
Quando o MUNDO é um cruzamento
movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais perto ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POEMAS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.
Marcelo Montenegro
não vou revelar nosso segredo
nem falar nosso passado
sobre o beijo
que escorreu para o esgoto
e nosso corpos
despedaçados no asfalto
Artur Gomes
do livro inédito
não se desespere menina
tudo em você se deu tarde
nenhum ciclo se rompeu
num piscar de asas
foi preciso lutas e hibernações
para que outras peles
te cobrissem a alma
como é difícil aceitar
o curso de ser outra
não se desespere vendo as primaveras
transcorridas o tempo indo ligeiro
e ainda assim seus passos distraídos...
a vida
(em pequenas bolhas que estouram
quase sem ruídos)
está sendo destilada
no íntimo
você se detém nas páginas de um livro
porque os parágrafos tocam fundo
e olhos novos sempre penetram
por instantes eternos
e tudo leva anos, meses em você
sempre assim tem sido
para poder nascerem sentidos
que revigoram o viver
Clara
Baccarin
Paisagem
Regressar
porque se é partida e fuga
e sempre deixamos alguém à espera
É rocha e água este tempo
de areias difusas a paisagem
represada na garrafa
E o gênio à espera
à espera
de caridosas mãos que o desarrolhem
e o tornem eterno e faça-se a história
Que são os anos para quem
vive sob permanente encantamento?
Que é da existência
quando desfeita a paisagem?
Dalila Teles Veras
BRASIS
meu avô era cafuzo
fazia experiências com
nevoeiros e formigas
enquanto o feijão esturricava
sob o sol
o algodão
era um tipo de neve
que cortava nossas mãos
e sempre derretia
na hora da venda
o eldorado era longe
os caixões de anjo
azuizinhos
e dona escassez
cada vez mais medonha
mas tinha ano que era bom
partilhávamos
melancias, sorrisos e jerimuns
cantarolando mangas
afetividades e umbuzadas
era fartura muita
de toda largura
desembocando em buchos vazios
e florescendo
os corações ressequidos
sacos e sacos de ráfia
fitilho, ligas, bagageiros
e o milho
enfim
em busca de casa
aí eram braços
moinho, tacho, peneira
colher de pau, dedo, lambida
(deixa isso quieto, menino!)
contentamentos
canjicas bem maquiladas
pamonhas em trajes de palha, café
cuscuz
milho assado e
fogueiras madrugadinhas
quando foi um dia
deus
descortinando o horizonte
deu fim no marasmo
ancestral
era mesmo como
se estendessem por sobre nós
a vermelhidão
de sêo arrebol
cada vez mais lúgubre
a parti daí
a chinela mudou de toada
agora eram fogo e fé
e excrementos quaisquer
alienígenas
algoritmos
furadeiras
guarda-chuvas
cacos de vidro
carros de família
dinamites
metralhadoras
formicidas
cachaça
arsênico
torturas
estupros
torturas e estupros
esquartejamentos
genocídio
eu sonhei
que uma bala de fuzil atravessava
o corpo franzino do meu filho
e acordei desesperado
pode ser que isso aconteça
há sempre gritos
disparos
e um choro perene
quando coturnos engravatados
transitam por nossas vielas
as chagas todas
o infausto eterno
encontram sempre
sempre
a nossa pele
a nossa pele
a mesma
a mesma pele
que dá de ombros
guardando os olhos no bolso
século xxi
- regado a modernidades -
antropofagia
não será aguar boi e soja
com sangue?
(sangue
de tantas
tantas mãos grossas que lutam
como quem guarda
no peito memórias de terra)
Paulo
Dantas
Hélio Oiticica
OBSTÁCULOS
Obstáculos
à beleza
de todo tipo
em toda parte
não há país
nem paisagem
a voz não soa
a vida à-toa
obstáculos
à beleza
de todo lado
em todo estado
assassinato
sem assinatura
palavra calada
mera rasura
obstáculos
à beleza
pouco ar
em todo lugar
apenas tédio
gosto médio
ofício sem ossos
oficina do ócio
obstáculos à beleza
obstáculos
obstáculos
Carlos Ávila
(De “Obstáculos”)
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