quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Mostra Visual De Poesia Brasileira - Poesia Em Movimento

 



o amor
é um barco bêbado
depois da chuva
naufragado frente ao cais
em Ubatuba

 

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com




"avalanche"

posicionar o corpo de joelhos: o tronco voltado
para a frente a escova de dentes pela metade
dentro da garganta todo dia depois do almoço

os cabelos amarrados a maneira de abafar os
ruídos e de esconder os laxantes debaixo das
meias sentir a tarde definhando carne adentro
e os ossos da bacia se encaixando nos dedos
ver estrelas ao final do dia as paredes escuras
rodando o suor frio rodando voltas ao pescoço
onde as saboneteiras já despontam delicadas
como ficam no colo das meninas bonitas essa
fraqueza nas pernas suspirar de fascínio entre
os dois lábios e a acidez impregnada na úvula

morrer à frente do espelho em um único sopro

(Amanda Vital) 



azul

estranhos, percebo, nossos dias
tempo de fingir que não, que sim

tempo de cadeados em latas de lixo
lanças nos muros, nas praças, na boca

bombas lacrimogêneas, gritos, despejos
tempo de grades na alma e nas janelas

tempo de falar de futuro nos bancos
tempo de não falar do passado

tempo de arder tudo que vai
entre a lua e este pedaço de carne

Tarso de Melo

de Caderno inquieto, 2012


Literatura Comparada


Quando o MUNDO é um cruzamento
movimentado cujo semáforo pifou.
FUTURO é um cartaz de filme antigo
num cinema que já fechou.
ANGÚSTIA é esse instante
durando meses. AFETO
é uma conversa entre velhos amigos
no bar mais perto ao velório de um deles.
MARCOS REY
foi meu Chuck Berry da literatura.
CARNE MOÍDA é o leite
condensado das misturas.
PAZ é sorrir por dentro. POEMAS
são imagens pingando
das goteiras do tempo.
ENTRAR é o começo
de sair. “SER ORIGINAL
é tentar ser como os outros
e não conseguir”.
ACADEMIA é a repartição pública
do corpo. SIMPLICIDADE
é a superfície do topo.
FRACASSO é o abajur da sorte.
CANTAR é roubar
uns minutos da morte.

Marcelo Montenegro 



fulinaimagem

por enquanto
não vou revelar nosso segredo
nem falar nosso passado
sobre o beijo
que escorreu para o esgoto
e nosso corpos
despedaçados no asfalto

Artur Gomes
do livro inédito
FULINAIMAGEM



não se desespere menina
tudo em você se deu tarde
nenhum ciclo se rompeu
num piscar de asas
foi preciso lutas e hibernações
para que outras peles
te cobrissem a alma

como é difícil aceitar
o curso de ser outra

não se desespere vendo as primaveras
transcorridas o tempo indo ligeiro
e ainda assim seus passos distraídos...

a vida
(em pequenas bolhas que estouram
quase sem ruídos)
está sendo destilada
no íntimo
você se detém nas páginas de um livro
porque os parágrafos tocam fundo
e olhos novos sempre penetram
por instantes eternos
e tudo leva anos, meses em você
sempre assim tem sido
para poder nascerem sentidos
que revigoram o viver

Clara Baccarin 


"Metrô sem Métrica" (2019) Tchello d'Barros



Paisagem

Regressar
porque se é partida e fuga
e sempre deixamos alguém à espera
É rocha e água este tempo
de areias difusas a paisagem
represada na garrafa

E o gênio à espera
à espera
de caridosas mãos que o desarrolhem
e o tornem eterno e faça-se a história

Que são os anos para quem
vive sob permanente encantamento?
Que é da existência
quando desfeita a paisagem?

Dalila Teles Veras 



BRASIS

meu avô era cafuzo
fazia experiências com
nevoeiros e formigas
enquanto o feijão esturricava
sob o sol

o algodão
era um tipo de neve
que cortava nossas mãos
e sempre derretia
na hora da venda

o eldorado era longe
os caixões de anjo
azuizinhos
e dona escassez
cada vez mais medonha

mas tinha ano que era bom
partilhávamos
melancias, sorrisos e jerimuns
cantarolando mangas
afetividades e umbuzadas

era fartura muita
de toda largura
desembocando em buchos vazios
e florescendo
os corações ressequidos

sacos e sacos de ráfia
fitilho, ligas, bagageiros
e o milho
enfim
em busca de casa

aí eram braços
moinho, tacho, peneira
colher de pau, dedo, lambida
(deixa isso quieto, menino!)
contentamentos

canjicas bem maquiladas
pamonhas em trajes de palha, café
cuscuz
milho assado e
fogueiras madrugadinhas

quando foi um dia
deus
descortinando o horizonte
deu fim no marasmo
ancestral

era mesmo como
se estendessem por sobre nós
a vermelhidão
de sêo arrebol
cada vez mais lúgubre

a parti daí
a chinela mudou de toada
agora eram fogo e fé
e excrementos quaisquer
alienígenas

algoritmos
furadeiras
guarda-chuvas
cacos de vidro
carros de família

dinamites
metralhadoras
formicidas
cachaça
arsênico

torturas
estupros
torturas e estupros
esquartejamentos
genocídio

eu sonhei
que uma bala de fuzil atravessava
o corpo franzino do meu filho
e acordei desesperado
pode ser que isso aconteça

há sempre gritos
disparos
e um choro perene
quando coturnos engravatados
transitam por nossas vielas

as chagas todas
o infausto eterno
encontram sempre
sempre
a nossa pele

a nossa pele
a mesma
a mesma pele
que dá de ombros
guardando os olhos no bolso

século xxi
- regado a modernidades -
antropofagia
não será aguar boi e soja
com sangue?

(sangue
de tantas
tantas mãos grossas que lutam
como quem guarda
no peito memórias de terra)

Paulo Dantas 

 

Poesia Visual - Tchello d´Barros 



Hélio Oiticica 



OBSTÁCULOS

Obstáculos
à beleza
de todo tipo
em toda parte

não há país
nem paisagem
a voz não soa
a vida à-toa

obstáculos
à beleza
de todo lado
em todo estado

assassinato
sem assinatura
palavra calada
mera rasura

obstáculos
à beleza
pouco ar
em todo lugar

apenas tédio
gosto médio
ofício sem ossos
oficina do ócio

obstáculos à beleza
obstáculos
obstáculos

Carlos Ávila

(De “Obstáculos”)


Paulo Lima 



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