o mundo é grande
e tem extremos
tem estrela e tem
estrume
tem perfume e tem
veneno
tem dias a gente
ama
tem dias a gente
briga
mundo mundo vasto
mundo
mundo malo mundo
bueno
não me chamo
raimundo
mas algo estranho
me intriga
como cabe tanto
ódio
num caráter tão
pequeno?
Ademir Assunção
Poema do livro
Risca Faca
Selo Demônio Negro
(2021)
Jura Secreta 43
veraCidade
por quê trancar as portas
tentar proibir as entradas
se já habito os teus cinco sentidos
e as janelas estão escancaradas ?
um beija flor risca no espaço
algumas letras de um alfabeto grego
signo de comunicação indecifrável
eu tenho fome de terra
e esse asfalto sob a sola dos meus pés
agulha nos meus dedos
quando piso na Augusta
o poema dá um tapa na cara da Paulista
flutuar na zona do perigo
entre o real e o imaginário
João Guimarães Rosa
Caio Prado
Martins Fontes
um bacanal de ruas tortas
eu não sou flor que se cheire
nem mofo de língua morta
o correto deixei na Cacomanga
matagal onde nasci
com os seus dentes de concreto
São Paulo é quem me devora
e selvagem devolvo a dentada
na carne da rua Aurora
Artur
Gomes
do livro Juras Secretas
Editora Penalux - 2018
imagem: Felipe Stefani
VeraCidade
https://www.facebook.com/artur.fulinaima.5/videos/1644592549276626
Camões/Lampião
(Sérgio de Castro Pinto)
1.
camões ao habitar-se
no olho cego
sentia-se íntimo,
mais interno
que o habitar-se
no olho aberto.
2.
lampião ao habitar-se
nos dois olhos
a eles dividia:
o olho aberto matava
e o outro se arrependia.
3.
camões ao habitar-se
no olho cego
polia as palavras
e usava-as absorto
como se apalpasse
e possuísse o próprio corpo.
4.
lampião ao habitar-se
no olho cego
chorava os mortos
do seu interno,
mas o olho aberto
era casto
e via no matar
um gesto beato.
5.
camões ao habitar-se
no olho aberto
via-se todo ao inverso,
(pelo lado de fora),
mas rápido se devolvia
e fechava o olho aberto
pra ser total a miopia.
6.
lampião ao habitar-se
no olho murcho
via o olho aberto
estrábico e rústico
e compreendia
o olho aberto
mais murcho
que o olho cego.
7.
camões ao habitar-se
no olho murcho
via o mundo claro
dentro do escuro
e o olho aberto
era inútil
ao habitar-se
no olho murcho.
8.
lampião
atrás dos óculos
sentia-se acrescido, somado
e era mais lampião
naqueles óculos de aro.
9.
os óculos
lhes eram binóculos
íntimos sobre a miopia
e quando os óculos tirava
lampião se decrescia:
o olho cego somava
e o aberto diminuía.
10.
camões molhava a pena
como se no tinteiro
molhasse o olho cego
e tateando, cuidadoso
saía do seu interno.
11.
(no tinteiro as palavras
em forma líquida
juntam-se uma a uma
à retina, à pupila.)
12.
camões
escrevia com o olho cego
por senti-lo mais seu
que o olho aberto
e por poder o olho cego
infiltrar-se, ir mais dentro
e externar o seu inverso.
obs.: poema vencedor do II FestCampos
de Poesia Falada - 2000 - projeto de poesia criado em 1999 por Artur Gomes na
Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que volta a coordená-lo neste ano de
2023 em sua XXIIIª Edição.
Convoco a volúpia
que arrebata os santos; a
vinha que estende a mão
aos amantes.
Eis o amor em sua semântica
de constelações; eis
as sanções do pólen
sob urtigas.
(O amor nos persegue
num céu de acrobatas).
Tento inventar suas estações
com a utopia de quem despe
um fruto,
e tudo é um barco
sem bússola;
uma estepe de lenhadores.
Por isso esplendo
este arbusto de auroras.
Estou livre para voar
com as palavras -
e o silêncio.
Salgado Maranhão
[a sagração dos lobos,
poema da série homônima do citado título]
canto para a lavadeira
a lavadeira no seu ofício
lava o rio, seu íntimo
e o rio escorre para enxaguar
seus dias.
a lavadeira no seu íntimo
recolhe os panos,
que lavados ao sol não vestem
seu passado.
a roupa não tem ofício
a não ser vestir seu dono
e a lavadeira no seu ofício
ensaboa o seu outono.
a lavadeira com água e sabão
espreme a vida para secá-la
em outro verão.
Chico Lino
Filho
* Esse texto é um dos dois poemas publicados nessa
antologia organizada pelo poeta Lau Siqueira, para minha alegria.
constituído
de tempo e
memória,
de mar bravio,
de alguns fragmentos
imutáveis
e algumas
sutilezas,
sou intensamente
infenso
ao invisível.
talvez eu seja
o silêncio quebrado
por alguma ave marinha,
que insiste
em grasnar
e despertar
o meu tempo findável.
Dudu Galisa
https://www.youtube.com/watch?v=zezltKm7Gdo
não há poema
apedrejaram a estátua do bandeira
e os tambores soaram às seis da manhã
não há palavra
e quero palavras macias
palavras antigas e suaves
como os tapetes da mesquita
que flutuaram sob meus pés
naquele domingo de março
não há letra suficiente
os signos falam uma língua de facas
os signos foram destruídos
os signos foram esquecidos
os signos fugiram pelas ruas
e ninguém mais consegue decifrá-los
estamos balbuciando sons
como numa infância
com sua mudez de aprendizes
como numa infância
de brinquedos quebrados
de caminhos partidos
como "veredas que se bifurcam"
*
*
*
Jussara Salazar
|_a língua das facas // img tema Chiharu Chiota
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