TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Ferreira Gullar
desassossego
o meu amor não tem sossego
morde lambe chupa come
teu corpo que ainda não conheço
tua carne - nem se quer tem endereço
o meu amor não tem apego
agarra larga prende solta
atira ampara - é cachoeira
escorre como trovoada
iansã em tempestade
o meu amor é livre e limpo
quando a alma está lavada
Federika Lispector
https://fulinaimacarnavalhagumes.blogspot.com/
A FLAUTA-VÉRTEBRA
A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e
celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
Vladimir Maiakóvski
Pessoal intransferível,
Torquato Neto.
“Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, herdeiro da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi.
Adeusão (14/09/ 1971 – 3a feira).”
Tudo do Torquato Neto, achado em Os últimos dias de Paupéria ou em Torquatália.
os rios secam
carangola muriaé paraíba itapemirim
morrem todos aqui dentro de mim
Rúbia Querubim
quando me debruço em indagações sobre o corpo da palavra corpo seria um pensamento nietzscheziano?
Artur Gomes
o corpo da palavra corpo
"Não pense que estou louco e só um jeito de corpo", Caetano Veloso jogava a palavra para o corpo. Marx, joga a palavra no corpo social , Nietzsche , joga a palavra na espiral das artes. Freud, joga a palavra no inconsciente do individuo. Sócrates joga a palavra num labirinto enigmático. Levi-Strauss, bate bola com a palavra entre a mente e a esfera publica. E o poeta Artur Gomes joga a palavra no corpo da palavra, ou o corpo da palavra penetra a margem do corpo do papel ? Fala poeta, da língua ferina! Meta a língua ou metalinguagem.
Sady Bianchin
foto: May Pasquetti - no RicorDare
16 de setembro de 2016 - Noite de Confraternização do XXIV Congresso Brasileiro – Bento Gonçalves-RS
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