Ainda
Estou pagando as prestações
dos janeiros de minha mãe.
As casas que sonhei
são palavras-úberes
crescendo sobre a pradaria.
Rebanhos
que trafegam com meus artelhos.
Aqui, ergueram-se as núpcias
verbais dançando à chuva. Sou parte
desse rito e desse
esquecimento.
Aqui, esteve uma faca
sobre a mesa e a certeza
atravessando os mortos.
Nas relíquias
que o sol deixa aos olhos.
Hei de esperar-te, estrela
inomeada, acostado ao cortejo
do mundo (e à majestade de
tuas fraturas); hei
de livrar-me do tanto
que me inundas em teu seio
de sangue e mosto.
Tu que me ensinas a morrer de
mim,
a exceder meu próprio arrendamento
Salgado Maranhão
In Pedra de Encantaria
Editora 7Letras - 2021
Visão
Te encontrar numa praia
de areia muito branca e mar
muito azul.
Pegar os teus dois olhinhos
marrons
e coloca-los num vidrinho em
cima
das pedras brancas da encosta.
Ficar ali a ver o mar
e a olhar os teus olhinhos
e a lembrar que nem tudo
o que está posto no mundo
é para se pegar com as mãos.
Michaela Schmaedel
In Coração Cansado
Editora Penalux - 2020
poema
para marielle franco
rascunhado na noite de sua brutal execução
certeiros, os projéteis
da janela
da mira
do gatilho
atingem o alvo
calculadas, as balas
na cabeça marcada
na mente visada
na ação inadequada
cumprem a função de calar
não foi apenas o sangue
jorrado na execução
não foi apenas a carne
(negra, para não fugir das estatísticas)
caça abatida no voo, ração
provimento dos sem razão
ali, naquele automóvel
ensanguentado
e
incômodo
foi abatida a utopia
calada uma voz que era de muitos
derrubado o pilar da esperança
executada a possibilidade de
redenção
Dalila
Teles Veras
In tempo em fúria
Edições
Alpharrabio - 2019
ALENTO
Do alento desta janela
que se abre para dentro
vou me deparando
com tantas sombras,
penumbras de mim,
rugas já tão antigas,
rusgas desconhecidas
ressurgindo ao vento,
tempestades de mim
revirando ao avesso.
Desfaço-me em sustos,
sussurros e tropeços.
Não me conheço.
Desfaleço.
Sou aquela que não me encontro.
Sou aquela que não me encanto.
Do desencanto desta janela
que se escancara para fora,
vou me encarando
pouco a pouco.
Já é muito.
Muitos escuros de mim,
desencantos que desconheço.
Aluga-se uma alma (deso)culpada.
Paga-se pouco
ou quase nada,
sem perigo de despejo,
sem aviso de desespero.
Nos labirintos
um desassossego
que desconheço.
Desconexo.
Reconvexo.
No vasto mundo tão completo.
No amplo e no perplexo.
(Nic
Cardeal, 28.10.2015 - poema integrante do livro 'Sede de céu',
Penalux/2019, pp. 55/56)
ELEGIA 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo
caduco,
onde as formas e as ações não
encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos
universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro,
fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em
que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o
sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem
guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de
sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de
aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas
te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a
existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de
indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles
conversas
sobre coisas do tempo futuro e
negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores
horas de amor.
Ao telefone perdeste muito,
muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de
confessar tua derrota
e adiar para outro século a
felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o
desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar
a ilha de Manhattan.
Carlos Drummond de Andrade
A Rosa do Povo
para Drummond, Darcy Ribeiro e Oscar
Niemayer in Memória
a rosa de Hiroshima ainda fala
a rosa de Hiroshima ainda cala
Frida e seus cabelos de aço
Picasso pintou Guernica
e quando os generais de Franco
lhe perguntaram:
- foi você quem fez isso:?
ele prontamente respondeu
- não, foram vocês que fizeram.
Agora trago a Rosa do Povo
para os dias de hoje nesse Templo
escuro
quem poderá viver nesse presente?
quem poderá prever nosso futuro?
nem Zeus nem o diabo que os carregue
eu quero um reggae um arte lata
a vida é muito cara nada barata
eu sou Drummundo Curumin - no fundo
Tupã Rebelde não pede arrego
poesia é pra tirar o teu conforto
poesia é pra bagunçar o teu sossego
Artur Gomes
leia mais no blog https://fulinaimagens.blogspot.com/
com uma câmera nas mãos
um poema na cabeça
vamos filmar o poema
antes que desapareça
era uma vez um mangue
e por onde andará Macunaíma?
na tua carne no teu sangue
na medula no teu osso
será que ainda existe
algum vestígio de Macunaíma
na veia do teu pescoço?
Artur Fulinaíma
Mostra Cine Curtas – Cinema Ambiental
veja na página https://www.facebook.com/cinevideocurtas
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