segunda-feira, 6 de março de 2023

poesia em movimento - múltiplas poéticas

 

macerar

macerar a vida nas mãos
muito além da superfície
entrar com gosto, com todos os sentidos
nos labirintos das so(m)bras
amar muito além da pele
e das palavras da boca
amar os olhos e os seus desvios
amar o grito - jorro de vazios
amar os ossos, as vísceras, os rios
amar em mim e no outro o que fede
onde sangra
o que se esconde amedrontado
atrás das pernas fechadas do ego
amar cirurgicamente
cavando, curando, mexendo
que a vida, me parece
não é para os fracos de estômago

Clara Baccarin

do livro Vísceras


le gumes
para Jiddu Saldanha e Tchello d´Barros

o gume da minha faca
ainda está bem afiado
quando fura sangra
rasga o pano
não é fake nem funk
é punk koreano

Artur Gomes
do livro inédito - Fulinaimagem 


UM PARA DENTRO TODO EXTERIOR

nada a esconder
mesmo que
muito por
saber

o mundo
é um
para dentro
todo exterior

por detrás
do dentro
apenas o
dentro

nada
é o que há
para além
do que há:

o oculto
às claras

fundura
em superfície

o mistério
sem segredos:

todas as coisas
ao alcance dos dedos

Paulo Sabino
do livro Um Para Dentro Todo Exterior
Editora Autografia - 2018

TROPICALISTA, 1999

Uma antropofagia, até tardia,
tornou a nossa música salada
de fruta, nacional ou importada,
naquela tropicália de alegria.

Sessenta foi a década do dia:
solar, viva na cor, iluminada.
Criou-se como não se cria nada.
Valia tudo e tudo, então, valia.

Caetano, Gil, Mutantes, circo e pão.
Modernantiga guarda, esquerdireita.
Barroco'n'roll. Mambossa. Rumbaião.

Eu era adolescente, e, certa feita,
senti num festival que uma canção
é letra, e tudo nela se aproveita.

Glauco Matoso

In: MATTOSO, Glauco. Paulisseia ilhada: sonetos tópicos. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999.

PARANÓIA EM ASTRAKAN

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugas e tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões aos pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorroidas
das beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para lindos tornozelos
arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação

Roberto Piva

in Poesia Primata

O avesso de Abel

I

Alma tem fratura.
Exposta.
Mas não pode imobilizar.
Fratura de alma precisa de exercício.
Dor de alma é coletiva.
O choro é uníssono.
Por isso o estilhaço não calcificado
do osso do meu irmão Caim,
que carpe sozinho no mundo
o mato de miséria e desespero, me (co) move.
Não quero meus ossos no lugar.
O avesso dos outros me humaniza
e me ensina a lidar com minhas dores e monstros.

II

Meus monstros são meus devires:
Devenho planta Devenho bicho
Devenho água Devenho deus.
Sou do tipo que não se completa,
Que vive à borda,
Apenas tange a realidade das coisas.
Nunca as tem.

Quem gosta de ter não devém.
Devir é trânsito.
É estar entre o humano e o cão
Sem chegar a nenhum.

Sou o que nunca é sendo tudo o que alcanço.
Não imito. Avanço.

De Van Gogh,
Sou a orelha decepada
Na noite estrelada.
Sou a coprofilia poética da cela de Sade
No frio,
Me cubro Com o manto de Bispo do Rosário.

Escuto, na surdez da noite,
A sinfonia heroica de Beethoven,
Devorando os insetos em vez de matá-los.
Sou eu próprio a ovelha imolada
No altar de Apolo, por ser todo Dionísio.

Atrás das grades onde me encarceram,
Uiva pra lua cheia cheia meu devir lobisomem.
Podem prender meu corpo, Mas não encarcerar minha alma.

Adriano Moura

*
Uiva
a lua
na celebração
da carne.
Derramam-se
estrelas
na jornada.
Pinga
no escuro
inseto colorido
- vaga luz -
intrometida.
*
Mell Renault

"Patuá" - Editora Coralina 

Miragem
para Olga Savary

Chegou, impressentida e silenciosa,
Com uma saudade eslava nos cabelos
E um ritmo de crepúsculo ou de rosa.

Os olhos eram suaves e eis que ao vê-los,
Outra paisagem, fluída, na distância,
Sugeria doçuras e desvelos.

No coração, agora já sem ânsia,
paira a serenidade comovida
que lembra os puros cânticos da infância.

Logo depois se foi, mas refletida
nesse espelho interior, onde as imagens
se libertam do tempo, além da vida,

Olenka permanece, entre miragens.

Carlos Drummond de Andrade, 1955 

PEDIDO
A Manuel Bandeira

Quando eu estiver mais triste
mas triste de não ter jeito,
quando atormentados morcegos
— um no cérebro outro no peito —
me apunhalarem de asas
e me cobrirem de cinza,
vem ensaiando de leve
leve linguagem de flores.

Traze-me a cor arroxeada
daquela montanha — lembra?
que cantaste num poema.
Traze-me um pouco de mar
ensaiando-se em acalanto
na líquida ternura
que tanto já me embalou.

Meu velho poeta, canta
um canto que me adormeça
nem que seja de mentira.

Caieiras, 25 de janeiro de 1954

In: SAVARY, Olga. Espelho provisório. Pref. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.


NOTA: Referência ao poema "Vou-me Embora Pra Pasárgada", de Manuel Bandeira

Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst

Tudo
porque ainda
sou menina
mym mesma na Balbúrdia
vai explodir adrenalina

Marisa Vieira

do inferno interno

evasivas invasões

  "...há de gritar

ante

às cúpulas


...
louca de fogo ... "

F. García Lorca

 

do efusivo anarco - léxico

de ígneo idílio - excesso


as auroras líquido - eróticas

as cópulas ilícito - heróicas


( vestígios ferino - ilógicos

indícios lírico - elétricos

colapsos insano - mórbidos

delitos lítero - aflitos )


: poesia


lasciva avenida íntima

vereda esquizo - trópica

cidade poeto - mórfica


festiva adoração onírica

obscena incursão abrasiva

dilatada expansão última

libidinosa falência múltipla


ao redor os olhos mortos

de mil girassóis


( as férteis fúrias uterinas

viperinas invasões lúbricas )


do nosso narco - cansaço

essa língua suja de Dor


: poesia


seis gaivotas

oito ilhas


ou


leões libertos

em salas de jantar


garbo gomes



 

Que moça que moça?

Que moça é essa, que moça
que fincou estardalhaços
numa carne de maçã
num pecado de chumaços
amassado de manhã
que me deixou nos espaços?

quem reinou sobre meu fel
em papéis e desamassos
brandindo cada escarcéu
em olhares aos pedaços?

que moça é essa, que moça
que cortou os meus espaços?

que moça é essa, que moça
que derreteu meus bagaços
arrancou minha alma pura
ressecada de embaraços

que moça é essa, que moça
que me deixou nos espaços?

a moça é feita de rua
costurada em romaria
a moça é de carne crua
a moça é de ventania.

por meus olhares devassos:
é uma moça toda nua
que me deixou nos espaços?

Depois falo de Vinícius

Se eu te entregar a noite
o que faço do meu corpo?
Se eu te deixar meu corpo
o que vou dizer da noite?

São os entraves do mundo
as calças que me acobertam
São as varas que me abatem
e mordem meu sacrifício.

Só bebo meu vinho amargo
só estranho o pão e o trigo
que passam pelo meu olho
e esmagam meu espaço.

A poesia que me arranca
teu braço que me sustenta
a vida que me debate
a fome que me ilumina.

Quanto vou morrer agora
se no teto já caído
a sombra da tempestade
faz a carne desabar?

Quanto tempo tenho ainda?

Poema 1

No princípio criou deus o mundo
e o homem derramou-se tempestade.
No princípio o verbo se fez fundo
e o homem habitou calamidade.
Quantos de vós, obreiros desta terra
fizeram-se irmãos depois da guerra?
Muitas estradas andei e nunca vi
o tempo e as estradas que perdi.
A cara que me põe enclausurado
é a mesma que arranca o meu estado
de leis e vendas, de olhos tão eternos
que fosse eu um filho dos infernos.

Habitei loucos e rasguei placentas.
O mundo é mais cruel do que inventas.

Romério Rômulo
 


ando tendo que aprender e aceitar

que algumas boas frutas
vão cair e apodrecer no chão,
(longe ou perto dos olhos)
e meus velhos pés
não vão correr
para acolher ou vivenciá-las

vou consentindo
a presença da rachadura na parede
que vai larga, alta
constatando o desabamento
e mesmo assim abandonando
o pensamento
renunciando do agir

vou compreendendo, não sem dificuldade,
que a pia pinga sozinha
que um dos gatos ficou manco depois de cair da árvore
que algum cachorro destroçou os sacos de lixo na estrada
e as embalagens vazias passaram a compor os acostamentos
os transeuntes não têm mais forças para se abaixar
e limpar os mundos
e nem eu, e nem eu

(é tempo de não fazer grandes listas
e feitos)

é tempo de olhar para as coisas sem interagir com elas

é tempo de deixar que ajam os tempos inumanos
longe das minhas mãos sistêmicas
até que os míseros olhos
percam as atenções das rachaduras
ausentes, desperdiçados
nos borrões da história

e se aceitem parte do amarelo das folhas
da suculência da manga adentrando o chão
e da sabedoria (mais antiga do que nós)
das ferrugens nas fechaduras e nos ossos

como ir pela direita
se a vida é torta...

e não importa...
podem querer
retificar a veia curva,
artística,
fechar a porta

mas se desviar
a artéria
ela já não pulsa,
ela jorra

vermelho
sangue
em mãos
verdeamarelas

já olhei de viés
pela direita
mas é só abrir a janela
e os retratos são de luta
quebram as ruas
as avenidas
realidades
mais injustas

que mancham
qualquer
e toda
a nossa
velha história

não, não sei fabricar o sol

mas sei ouvir o chamado
e encontrar os caminhos
da nova alvorada

não sei inventar o sol
(bem que tentei algumas vezes)
mas sei aceitar as noites
e permanecer no escuro
até que meus olhos
clamem por luz

não sei recriar o sol
que deixou de existir ali
mas bem que já percebi
que minhas mãos
teimosas e insistentes
são incapazes de cunhar
astros livres

não sei fabricar o sol
e não gosto da escuridão
só posso então
pacientemente
abrir o peito
na ventura de seu
imprevisível
advento


Clara Baccarin


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