domingo, 1 de janeiro de 2023

Mostra Visual de Poesia Brasileira - Poesia em Movimento

 


PREVISÃO

 

Estender sobre a linha do horizonte

o fio mais tênue do equilíbrio

capaz de suportar a brisa, o vento, a tempestade

 

esticar os dedos acima da cabeça

bem mais alto

como se sonhasse a textura das nuvens

- mergulhar os dedos na maciez do ar rarefeito –

 

fazer de si um caminho sem bússola

cada passo a seu tempo

sem nenhuma pressa

ou exigência

sem nenhum destino

exceto o que se permuta em amor

 

respirar como as montanhas

na altivez sincera

depois de cada raiz secreta que,

do ventre da terra,

sabe da necessidade da espera

pelo sonho da semente

 

conhecer de pássaros

da paciência dos ninhos

da liberdade implícita nas asas

do canto matutino em sustenidos sentidos

 

olhar à frente, ao lado, aos céus

sem perder o chão

sem tropeçar nas sombras ou nos vãos

 

reverenciar os idos, os findos

os recém-nascidos, os maltrapilhos

aqueles loucos: os poetas e os absortos

 

agradecer às águas

todas as águas: rasas, fundas, límpidas, densas

àquelas que saciam a sede

ou mesmo às que nos sucumbem em solidão

e às que germinam vida do trigo ao pão

saudar as possibilidades tantas

 

             os desvios necessários

             as quedas imprevistas

             as mudanças de percurso

             as estradas tortas e os labirintos

compreender os pequenos em tamanho

             os ainda menores

             os ínfimos e os invisíveis

             os gigantes, os astronômicos

             as miudezas e a imensidão

 

até finalmente aprender a linguagem

das palavras silenciosas

esculpidas em dimensões paralelas

que nos aguçam os sentidos

e nos sussurram entre as paredes do coração

 

conhecer de gestos improváveis

propícios aos espantos, aos delírios, aos encantos

como quem vive cada instante

pela primeira ou última vez

 

- nada há de mais surpreendente

do que acreditar, creditar

editar-mo-nos ao próximo dia

de mais uma ciranda de translação! -

 

(Nic Cardeal, 31.12.2022)

Que 2023 seja feito de todas as possibilidades de comunhão!

(📸 imagem do Pinterest)



                 Hugo Pontes – Poesia Visual 


Forte apache

 Noel Rosa dizia que era universal sem sair deseu quarto. Elvis Costello disse que o rock‘n’roll

não morrerá porque sempre vai ter um garoto

trancado em seu quarto fazendo algo que ninguém

nunca viu. Laura Riding, por seu turno, falava

da pretensão de “escrever sobre um assunto/

que tocasse todos os assuntos/ Com a pressão

compacta do quarto/ Lotando o mundo entre meus

cotovelos”. Já François Truffaut considerava-se

pertencente a uma família de cineastas que

praticava uma espécie de “cinema do quartinho

dos fundos, que recusa a vida como ela é” —

como“nas brincadeiras de crianças, quando

refazíamos o mundo com nossos brinquedos”.

Como escreveu Ferreira Gullar no Poema sujo,

“que me ensinavam essas aulas de solidão”?

Aliás, é Pascal quem avisa: todos os males

derivam do fato de que não somos capazes

de permanecer tranquilos em nossos quartos.

 

Marcelo Montenegro


é ingênuo pensar

que pousará inúmeras vezes

sobre os nossos destinos

 

ue as portas desse cosmos

serão sempre facilmente

encontradas

 

é inútil pensar

que a flor que concebemos

poderá ser contemplada

da mesma forma

do mesmo intenso

com a mesma exuberância

deste tempo em nós

 

é que a gente já desabrochou

e inundou os canteiros

e deveríamos olhar

mais agora

para os nossos

pés imersos em fartura

 

não por que não poderemos

de fato

nos restaurar

(nos pequenos respiros da vida)

e recompor o encanto

 

mas por que agora

aqui já estamos

cheios de pólen

 

e eu ainda não quero

lavar as mãos

Clara Baccarin 

aos escolhos

da palavra

ele se agrega

palavra

parede viscosa

onde se gruda

o poeta:caramujo

 

Herbert Valente de Oliveira 



O OVO E A FAKA


sob a fina membrana do ovo
a serpente já pulsava
o inferno já se impunha
a peçonha se multiplicava
diante da fascinação do povo
quando da injustiça
a forte clava
sovava a massa ensandecida
a serpente
ainda zigoto
inoculava com sua língua genocida
um fato, uma faca, um fuck, um fake
de repente,
não mais que de repente.
o ignaro já há muito
bufava talco
rastejava sob um lábaro ianque

gestava a serpente belicosa
quando do alto de seu palanque
ostentava
aquela barriga misteriosa
e na hipótese de que a faka
lhe furara o bucho?...

que bicho saltara
daquele infame ventre?...
um sopro?
um riso?
um bufão de mola?
...Mistérios que ainda intrigarão a gente
até que um poeta,
um anjo, um tira ou um bruxo
desembrulhe o sórdido ovo
e exponha a faminta serpente.

 

Alberto Antônio Sobrinho

 


Debaixo de minha mesa

tem sempre um cão faminto

-que me alimenta a tristeza...

Debaixo de minha pele

alguém me olha esquisito

-pensando que sou ele.

Debaixo de minha escrita

há sangue em lugar de tinta

-e alguém calado que grita.

 Affonso Romano de Sant'Anna



No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz:
Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

 Manoel de Barros



          o  delírio

é a lira do peta

se o poeta não delira

sua lira não concreta

 

Artur Fulinaíma

https://personasarturianas.blogspot.com/




provocação

 

não sei vocês

mas tenho um sonho pirante

para dois mil e vinte e três

dar sonhos livros

beijos delírios

espalhar a lucidez

mergulhar no mar de letras

dançar à luz da lua

vestida de nua e crua

nas ruas de Iriri

botar meu bloco na rua

ir de encontro ao que vier

o amor já tenho de sobra

ser feliz é minha obra

e venha comigo quem puder

 

Rúbia Querubim

2 – janeiro – 2023

https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/


ano passado eu morri

 

nem sempre o que penso

é o que escrevo

suspenso no ar as vezes

sobra letra na treta

do tanto que a tralha toca

sigo trilhas atalhos atravesso

avesso o que o inverso diz

atriz me leva aos descompassos

do desassossego pessoa que sou

assim meio discreta quando não concreto

nada do que penso no papel não cabe

um chá antigo

baseado em Bo b Marley

Bob Dylan ou mesmo Belchior

quando ainda não escrever

o dito por não dito

eu quero que exploda o mito

“tenho sangrado demais

tenho chorado pra cachorro

ano passado eu  morri

mas esse ano eu não morro”

 

Artur Gomes Fulinaíma

2 – janeiro – 2022 – direto do pico da Bandeira

https://arturkabrunco.blogspot.com/



do furor feroz

do que veloz escorre

" precisamos de grandes

copulações douradas "

 

Jim Morrison

 

não é de poesia

nosso erro

nem límpida

nossa água

a fome

difícil

cresce

no íntimo

das auroras

na graça selvagem

dos pássaros

( antes da palavra )

não é belo

nosso ócio

nem virtuosa

nossa queda

o fim

fácil

invade

as entranhas

suculentas das gordas

cidades vazias

não é de amor

nosso vício

nem pacífica

nossa carne

( às seis sempre

abraçados

sangramos

um silêncio

dentro )

não é de poesia

nossa palavra

( ignoramos o fogo )

de olhos fechados

entrevemos ilhas

oníricos exílios

páginas floridas

do falso fundo

feio

nosso

erro

 

garbo gomes


Pessoal intransferível

  “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.

Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, herdeiro da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão

 

 Torquato Neto





VIDA TODA LINGUAGEM

 

Vida toda linguagem,

frase perfeita sempre, talvez verso,

geralmente sem qualquer adjetivo,

coluna sem ornamento, geralmente partida.

Vida toda linguagem,

há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome

aqui, ali, assegurando a perfeição

eterna do período, talvez verso,

talvez interjetivo, verso, verso.

Vida toda linguagem,

feto sugando em língua compassiva

o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!

leite jorrado em fonte adolescente,

sêmen de homens maduros, verbo, verbo.

Vida toda linguagem,

bem o conhecem velhos que repetem,

contra negras janelas, cintilantes imagens

que lhes estrelam turvas trajetórias

Vida toda linguagem –

como todos sabemos

conjugar esses verbos, nomear

esses nomes:

amar, fazer, destruir,

homem, mulher e besta, diabo e anjo

e deus talvez, e nada.

Vida toda linguagem,

vida sempre perfeita,

imperfeitos somente os vocábulos mortos

com que um homem jovem, nos terraços do inverno,

/ contra a chuva,

tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse

outra, imortal sintaxe

à vida que é perfeita

língua

eterna.

 

Mário Faustino 


Vida Toda Linguagem

para Mário Faustino in memória

não sei dizer
o que quer dizer esta metáfora
elétrica lâmpada musa
anima minhas tardes de chuva
senhora das nuvens de chumbo
na lírica do desassossego
eu tenho seis espadas e pedras
girassóis que roubei dos teus cabelos
o beijo que nunca mais foi dado
nos Retalhos Imortais do Serafim
linguagem um Lance de Dados
e Mallarmé Nada Sabia de Mim

Artur Gomes

https://fulinaimagens.blogspot.com/


 

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