segunda-feira, 28 de março de 2022

A poesia de Lucia Miners por Thereza Cristina Cruz

  


Rio

 

Há um rio em minha vida,

há um rio,

que corre em desmaz -

elo de mim para mim,

cachorro.

 

Passa por cima de paus

e pedras,

sem eira nem beira –

rio que se cante.

 

Luas se suicidam

em suas águas

minguantes,

cheias,

paraíbas.

 

Nu, faminto,

abandonado,

me dói o coração

ao vê-lo agonizando,

e belo, ainda,

belo, mesmo que um dia,

desague a solidão

de tal maneira,

que em seu leito

um mandacaru

brote sertão.

 

(em “Paraíba de Mim”)

 

Praça das Quatro Jornadas

 

Leões da Praça das Quatro Jornadas.

Quatro tens, como os Cavaleiros

do Apocalipse. Luas desabadas

caem sobre ti, teu chafariz, primeiros

 

luares, primeiras manhãs deslumbradas,

primeiras tardes e os feiticeiros

primeiros beijos das namoradas

envoltas  em mil risinhos brejeiros...

 

Quantos sóis renascem das louças  tuas?

Quantas flores brotam do ventre teu?

Quantas manhãs engoles? Quantas ruas

 

te merecem? E o quanto estuas?

Não mora em ti um Pássaro Sofreu?

Não sei ainda, de ti, as dores cruas!

 

                          Campos dos Goytacazes - Verão, 1991 

                          In SONETOS DE MUITOS CAMPOS (Itinerário Poético de Campos dos Goytacazes)

 

poema1

 

Sobre a tessitura do existir,

o que se pode dizer

de Amor?

 

Do ser capaz

de manejar o todo o dia,

(cada coisa no seu lugar),

e de se ser apenas

a própria pessoa

sem se diluir nos outros,

e, ao mesmo tempo, recebê-los

com a naturalidade da posse de um braço,

ou de seu próprio cabelo,

como poder?

 

E do arcar com a surpresa

da manhã que nasce

e que me coloca diante do fato

de estar viva

e de ser mulher?

 

E das consequências desta realidade

que eu nem pedi,

que me foi dada como um presente,

(sob o papel a caixa de surpresas),

o que se pode dizer?

 

E por que a mim coube esta

e não outra posse,

como ser árvore

rio,

flor

ou asa?

 

Perplexamente reconheço

Que mais nada me seria dado.

Nada mais saberia ser, eu,

que já nem sei nada

e tanto me custa aprender

aquilo que sou.

 

É difícil ser e há momentos

em que o definir-se,

o estar sendo aquele momento

 é como um sonho

e o estranho

é a gente se encontrar na gente mesma

limitada em corpo ancho,

entre nascimento e morte

limitada.

 

(em “Do íntimo dizer”)

 

Interpretado por Thereza Cristina Cruz, este poema foi o vencedor do FesTribuna Livre de Poesia Falada, Festival criado por Artur Gomes para o Bar Tribuna Livre em Campos dos Goytacazes – 1997 – a grande final foi realizada no Bar Boca de Luar, em Grussaí – no verão de 1998.

 

Paraíba de Mim

Ao Prefeito Antony Matheus

 

Tenho por ti

Uma ternura...

 

Se soubesse cantar,

te cantaria gonzaga,

meu “Velho Chico”,

Paraíba de mim.

 

Tens lá tua foz

onde desaguas

e já me sonhei

morando em tuas águas,

entre Lapa e Lagoa,

olhando as luas cheias

que te transformam

em Amazonas

desta terra de antigos

Goytacazes.

 

Hoje, abandonado,

bem merecias

que te limpassem

(até os cachorros

merecem),

curando tuas feridas

centenárias

e aceitáveis

como rosas.

 

Publicamente,

se orgulham de ti.

Sais em páginas

de jornais,

viras cartões postais,

iluminados,

e retocados,

turistas.

 

Querem-te soberbo:

tigre em sua selva.

 

Mas como,

se em tuas entranhas 

peixes morrem

e apodrecem

e sufocas

quando tua voz

fica rouca

do socorro que pedes,

mendigo?

 

Ah, Paraíba,

meu Paraíba,

te conheço há tão pouco

e já sei falar

tua linguagem,

clara

para os ouvidos

de quem te ama.   

 

(em Paraíba de Mim)

 

O meu País

 

Campos

é o meu País,

onde canta

a Jandaia

na fronde

da Carnaúba,

onde canta

a Sabiá,

onde um Rio

rasga a cidade,

sem marola

de se ver.

 

Campos

é minha tenda

de Cigana

que sou,

de sortilégios,

e arrancar

estrelas

do céu,

de iluminar

as águas

do Rio

meu sangue,

linfa,

lágrimas,

Parahyba

 

Para ver

estrelas,

melhor olhar

suas águas

multiprismáticas,

marulhantes

dentro de mim.

 

Dentro de mim

 

    RJ – Primavera – 2005

     In Poesias Sem Tempo

 

 NARCISO

                                  Para Yve, Everaldo Carvalho                 

 

Narciso, reflito espelho de mim,

reflexo sou dos meus sóis, meus luares,

minhas paisagens e os meus sem-fim

de noite. Narciso, ando meus andares

 

entre estrelas, em brilhos de cetim

Narciso sou meu outro nos meus mares

sou caravela, nau e bergantim,

andorinha andorinhando pelos ares

 

Narciso sou e me deixo levar

pela minha narcisa natureza

de, centauro liberto, galopar

 

meus descampados e o me amar

é, apenas, mais um gesto de beleza

Narciso, eu, sou o azul do mar

Campos dos Goytacazes, Primavera, 1993

                        (in “Yve, não mais que Yve”)

 

 HOMENS

 

Separados por barreiras humanas

Os homens vivem seperadaos.

 

Nem as mãos cantando abraços

nem o olhar cantando o amor

respondem o triste canto,

o inútil canto

que eu canto.

25/02/53

 

Homem nº

 

Você me visitou

e eu não tinha uísque

- grave crime –

e lembro

como você me enforcou

nas traves da varanda

Revejo

contra o ocaso

o seu lay-out

na mais que perfeita

arte-final.

 

Apertamo-nos as mãos

como educados cavalheiros

após duelo.

Sorrimos com elegância

Entre mortos e feridos,

Não sobrou ninguém

 

(em “MulherCidadeHomem” – RJ – 1972) 

 

Beira-Rio

A quem direta ou indiretamente participou de “Um grito parado no ar” de Gianfrancesco Guarnieri, apresentado no Teatro de Bolso. Novembro, 1991

 

uma cidade só nasce quando um rio

ou outra água, ribeirinha, se planta

como roseira. Que a água seja um fio

quase lunar. Cidade se estende manta

 

ou uma teia filigrana. E quanta

gente borbulha neste rosal, desvio

súbito de um caminho! Espanta

cidade e água viverem em macio –

 

amor de Deus, em mundo benfazejo

e diário despertar em burburinhos

de alegria, sofrimento e desejo

 

de construir destinos. Beira-Rio vejo

surgirem histórias: pássaros sem ninhos:

sonhos entressonhados que antevejo.

 

Inverno, 1991

 

 

A cor é que tem cor na asa da borboleta

Nela, o movimento é que se move

O movimento faz uma pirueta.

O movimento é o gesto que comove.

 

O perfume é que tem perfume no perfume

da flor. Ela por si mesma não tem

nem cor nem perfume e nem mesmo lume

Ela está acima do Mal e do Bem.

 

A borboleta é borboleta e só.

E a flor não é mais do que flor.

A pirueta não é canto de curió

e o amor é o amor e é o amor..

 

Para “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caieiro

(in: “Pastor de Rimas” – Lucia Miners

Campos, primavera, 2003

Madrugada Manhã Edições

 

Lucia Miners




 

 Lucia Miners é uma mineira que adotou a cidade de Campos dos Goytacazes.

A mineira mais campista que já vi.

Nascida em Barbacena no ano de 1934, viveu no Ceará e no Rio de Janeiro, onde, durante os anos de chumbo, criou um importante suplemento literário no Jornal Tribuna da Imprensa, através do qual realizou intenso intercâmbio cultural, reunindo escritores de diferentes e distantes lugares do país.

Conhece Campos trabalhando na organização de um ciclo de palestras para a Faculdade de Filosofia, com a nata literária nacional, incluindo Ziraldo e Afonso Romano de Sant’Ana.

Em suas palavras, fica “abestada” com o rio Paraíba atravessando a cidade. Apaixona-se pelo rio, pelo povo, pela cultura da região. E tranca-se em casa escrevendo “Parahyba de Mim”, espantando-se com a própria obra, embora já tivesse publicados vários e premiados livros infantis.

Daí em diante não parou mais (palavras suas em entrevista a Churchil Rangel), escrevendo prosa e poesia, premiada em diferentes festivais.

Paraíba de Mim é, talvez, a mais conhecida de suas obras não publicadas, tendo recebido montagens teatrais, inclusive com alunos de um dos Cieps locais, programa em que atuou como animadora cultural. Além da montagem “Paraíba de Mim, uma história de amor”, criada por Roosevelt Maia e encenada no Teatro de Bolso em 1991/92. Hoje essa obra é objeto de estudo realizado pelo professor Adriano Moura e alunos da Literatura do Iff , onde será finalmente publicada.

Lucia Miners é a Lucia jornalista e escritora, autora de premiados livros infantis em que aborda com sensibilidade temas delicados como em “Juca das Rosas”. Ou em que desconstrói estereótipos dos papeis feminino e masculino, como em “Aninha e João”, publicado pela editora Ática.

É também a poeta que canta as ruas da cidade que ama e, os amigos que nela fez, o rio arrebatador de sua vida (“Há um rio em minha vida”), a natureza e os animais com quem convive como semelhantes. Teve vários poemas premiados em festivais, como é o caso do Poema 1. Constrói sua poesia reunindo os poemas dentro de temas que parecem ser os títulos de cada livro terminado ou em processo de elaboração: “Paraíba de Mim”; “Sonetos dos muitos Campos - Itinerário Poético de Campos dos Goytacazes”; “Do Íntimo Dizer”; “Yve não mais que Yve”; “Pastor de Rimas”; “Poesias sem Tempo”; “MulherCidadeHomem”...  Durante sua passagem pela Casa de Cultura Villa Maria como frequentadora assídua, os poemas que escrevia eram depositados num balde em que ficavam à espera de leitores. Era a “Poesia D’Balde”.

A educadora que sonhou e abriu uma escola e participou da construção do projeto de escola pública idealizado por Darcy Ribeiro, uma outra paixão sua.

A Lucia do galo. Manhã é protagonista em sua história.

Mãe e avó.

Lucia Miners são muitas.

Thereza Christina Cruz


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