Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
João Cabral de Melo Neto
Publicado no livro A educação pela pedra (1966).
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Ferreira Gullar
Na Vertigem do Dia - 1980
A escrita
A folha de pele alva
cativa-me...
embriaga-me...
penetra-me n'alma.
Pego de um lápis, se por agora,
a fim de acariciá-la,
dentro de uma simbiose
liamada de prazer.
Sinto frio, calor, suo demasiadamente
vendo cada sílaba ser contorneada.
Orgasmos literários vão e vêm...
Como quem morre, escrevo versos.
Caio Valeriote
Antônio Roberto de Góis Cavalcanti - Kapi
A FOGUEIRA
Em dezembro, sonhar com janeiro,
em janeiro pensar: fevereiro
vai ser bem diferente
A semana inteira chocar o sábado,
no sábado, esperar o domingo.
No domingo dizer: no outro, quem sabe?
O tempo todo apoiar-se na bengala
da ilusão, a preferir a cegueira
à visão do abismo.
Cansei-me da farsa.
Fiz uma fogueira, joguei
a esperança dentro dela
e arregalei os olhos.
Astrid Cabral
O tempo nos tece uma veste
E muito custa esse imposto
Pois lento nos dá outro susto
Gastou-se mais um agosto
Posto que vasto é o tempo
E visto que nos é imposto
Viver só um tempo sucinto
Numa sina à contragosto
E a soma insana dos anos
Aos poucos sela um desgosto
No raso espaço do espelho
O tempo esculpe seu rosto
Tchello d`Barros
Quero apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.
Olga Savary
Ali
ali
só
ali
se
se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse
se ali ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce
ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece
Paulo Leminski
Amanhã meu corpo dói
se não é de danças e de bênçãos
que eu o cubro
Amanhã as ondas devolvem
o que sem sentir com o dentro
eu mergulhei
Amanhã o coração regurgita
onde eu pisei
sem caber todo o meu ser
Clara Baccarin
Amavisse
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
Hida Hilst
Ao teu
lado
toda a história do amor:
acordar ao teu lado
de bruços
a penugem das costas, em remoinho
(e esta ave nascida bem no meio das hastes
das duas pontas de faca
no homoplata
Mar Becker
Canção
Amiga
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
Carlos Drummond de Andrade
caverna
me tranquei na caverna com
platão
pra enfrentar meus
próprios males
não vi primata nem zapata
nem dragão
ouvi o cato das sereis
pelos bares
chamei pra briga o capeta
com facão
senti o aço perfurando a
carne mole
gritei bem algo um tremendo
palavrão
chamei são Jorge pra ajudar
o filho pobre
daqui ninguém sai vivo nem
com reza
ou milhão
um dia até o tolo acaba que
descobre
perdi o medo de espelho e
solidão
só levo a vida coma pele
que me cobre
Ademir Assunção
Do livro Risca Faca – 2022
o negro do céu
abrilhanta a lua
ai, que frio!
em meus sonhos
o telefone toca
acordo.
a lua no céu
estrelas cintilam
oh, insônia
a lua sumiu
o céu escureceu
nada aconteceu
Cesar
Augusto de Carvalho
do livro Curto Circuito
Editora Patuá - 2019
Fernando Aguiar
cheguei ao céu
diz o pinheiro
eu sempre quis
mas
o meu lugar
é a raíz
Hamilton Faria
Poemas da janela
DA
INCAPACIDADE DE SENTIR LUTO
amas parasita, diz e diz, não hesita:
o amor, errante, além de tudo cego
feito um imenso morcego negro
que, imerso em trevas, só vê o ego
ouves senão por apupos meigos
inflação económica de si mesmo
insuflada por espelhos vesgos
e promessas de paraísos temos
no vazio de si inflas de ilusão
e epifania um Pai de aluvião
que cadencie carnificina e gozo
o ego cego que tem por coração
blindado e oco veloz do ai se esvazia
veloz esqueces crimes e imune à punição
desobrigas-te de tudo
e até do luto
Ademir Demarchi
Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora quem está por fora
não segura
um olhar que demora de dentro de meu centro
este poema me olha
FAVELA
Meio-dia.
O morro coxo cochila.
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.
Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.
Um pé de meia faz exercícios no arame.
Vizinha da frente grita no quintal:
— João! Ó João!
Bananeira botou as tetas do lado de fora.
Mamoeiros estão de papo inchado.
Negra acocorou-se a um canto do terreiro.
Pôs as galinhas em escândalo.
Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.
À porta da venda
negro bocejou como um túnel.
Raul Bop
Flor dos
Santos
Santa Bárbara que nos livra do corisco.
São Bento que cura mordida de cobra,
São Gonçalo casador.
São Jorge que me cedeu o seu nome
pra meu pai me batizar,
que escolheu o seu dia
pra eu chegar nesse mundo,
que só não me deu seu cavalo
porque o pobre do bichinho
não podia descer da lua!
Pulei tanta tacha de engenho,
passei tanta correnteza,
conheci tanto perau fundo!
E você, meu anjo da guarda,
nunca me disse seu nome,
pra eu fazer um poeminha pra você!
Jorge de
Lima
guerreira, charmosa e doce
filha da guerra e do fogo
produz vento, tempestade.
o incauto, coitado,
se envolve na suavidade
de seu olhar esverdeado,
de seu sorriso estonteante,
sem saber, está enredado!
Cesar Augusto de Carvalho
Jura secreta 13
o tecido do amor já esgarçamos
em quantos outubros nos gozamos
agora que palavro Itaocaras
e persigo outras ilhas
na carne crua do teu corpo
amanheço alfabeto grafitemas
quantas marés endoidecemos
e aramaico permaneço doido e lírico
em tudo mais que me negasse
flor de lótus flor de cactos flor de
lírios
ou mesmo sexo sendo flor ou faca fosse
Hilda Hilst quando então se me amasse
ardendo em nós salgado mar
e Olga risse
pulsando em nós flechas de fogo
se existisse
por onde quer que eu te cantasse ou Amavisse
eu te desejo flores lírios brancos
margaridas girassóis rosas vermelhas
e tudo quanto pétala
asas estrelas borboletas
alecrim bem-me-quer e alfazema
eu te desejo emblema
deste poema desvairado
com teu cheiro teu perfume
teu sabor teu suor tua doçura
e na mais santa loucura
declarar-te amor até os ossos
eu te desejo e posso :
palavrArte até a morte
enquanto a vida nos procura
Artur Gomes
Juras Secretas
Editora Penalux – 2018
Let's
Play That
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that
Torquato Neto
Memória
Em meu dedo
o teu dedal
(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)
Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir
Dalila Teles Veras
NA GARGANTA
Se
me perguntares outra vez porque escrevo
gritarei
contigo todo o meu poema reduzido:
Escrevo
porque preciso
–
tenho a alma entalada na garganta
e
um coração refém dos meus ouvidos
isso
é tudo.
Nic Cardeal
O
Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
O mundo que eu venci deu-me um Amor
O mundo que eu venci
deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci
deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci
deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e
treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...
Mário Faustino
O SER O VOO
Nenhum ser é plenamente voo
se não sabe da magia da terra
ou totalmente luz
se o escurecer lhe cega
Todo horizonte é terrível
se o voo nega
o passo elementar
Logo sigo quase
pássaro
Hamilton Faria
PARA UM
NEGRO
para
um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.
para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração.
Adão Ventura
POEMA DO
AVESSO
O que há em mim
é a lenta
preparação
do que há em
ti
sombra
segada
sangrada
e
sagrada
até
nos olhos
dos meninos
que nasceram
sem
olhos
vidência
única
(vide o
verso)
visão
múltipla
(vede o
anverso)
e tudo que
está do outro lado
do espelho.
Rubens Jardim
PONTA
DAS ASAS
e
se me fico assim
nessa espera doída de um abraço seu
dos que me acalentam
à borda do furacão
ou nessa angústia covarde
de que a ponta dos ossos de suas asas
arranhem minha alma já avariada
neste
aguardo ansioso de sua língua fervente
a lamber meu corpo a me acalmar o sono
ou o medo pavor de que o bifurcado escaldante
queime arranque minha pele
e
se me fico assim
com essas esperanças cegas
a me preparar para o pulo
Claudinei Vieiraa
TANTO ÓDIO, CARLOS
o mundo é grande
e tem extremos
tem estrelas e tem estrume
tem perfume e tem veneno
tem dias que a gente ama
tem dias que a gente briga
mundo mundo vasto mundo
mundo malo mundo bueno
não me chamo raimundo
mas algo estranho me intriga
como cabe tanto ódio
num caráter tão pequeno
Ademir
Assunção
Risca Faca – São Paulo
Selo Demônio Negro - 2021
Uma didática da invenção
O rio que fazia uma volta
atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole...
Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz...
se chama enseada...
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros
Mímica, meu pão
o silêncio que inscreveu
na tecedura da vida
Hoje não sou mais silêncio
e nem silenciado,
a mímica desenhou
me deu asas
me deu o mundo,
e hoje, sou viajante
de outros mundos.
Jidduks
Foto: Ilana Agnes
O desejo da boca é o beijo
onde mora o objeto do desejo
no desejo do objeto
no concreto no poema
a palavra sangra
a palavra goza
a palavra grita
na escrita em todo corpo desejado
o desejo da boca é o beijo
quando ainda não roubado
Artur Gomes
para Juliana Stefani
3 abril 2023 – arte José César Castro
Minha terra é brasilíada, brasidílica, brasilinda! Minha terra tem mais que palmeiras, é Pindoramagia! A descoberta desse Brasil é diária. A conquista, também. Aqui tem pau-brasil, pau brasino de brasido e brazedo: brasilivre de orlas paradisíacas, areias que guardam pegadas de curipiras e matas que são moradas de mapinguarís. Aqui tudo que se planta dá e recebe, a dar com o pau. É lugar de flora melíflua, flores ebúrneas, pétalas ebóreas, inflorescências arborescentes. Olores de eflúvios oníricos e semeadura de revolução que germina em conquistas do povo, da pólis, de todos. A esperança está na brisa, em flagrante fragrância que poliniza, poesia que prolifera, verve que poliflora. Bem-vindos a esta nação de ritos: de Torés transcendentes, de Cruzes redentoras, de Terreiros libertários.
II - ENTRE PASÁRGADA E ILHA DE UTOPIA
Uma criança desenha a palavra amor na areia da praia de Itamaracá. As sombras das casas nos povoados e vilas de nosso Brasil profundo, crescem no poente, formando palavras como: recanto, idílio e paraíso. Óbidos, Blumenau e Olinda. É nesse costado que o Sol nascente encontra primeiro a América menos americana das Américas. Essa terra tem dono sim senhor: há tem perímetros e pontos cardeais, mas as fronteiras são de abraços, brindes e sorrisos. Brasilíada, daqui e de lá: do Arroio do Chuí, no Sul, ao Monte Caburaí no Norte; da Nascente do Rio Moa, no Oeste, à Ponta do Seixas, no Nordeste. Aqui a bússola da liberdade se desenha no ir e vir da rosa dos ventos elíseos. Territórios de florestas e floreiras, matas e clareiras, ilhas de praia, areia e onda: tem surf na pororoca e mergulho no Pantanal. Escalada no Monte Roraima e neve em Brunópolis. Desde navegações pelo Rio Madeira a jornadas pelos Caminhos do Peaberú. Nossos rios são ruas de ontens e amanhãs: fluem no dia de hoje em nossa parcela planetária. Os afluentes do Rio Amazonas tingem o sangue debaixo da derme. O cume do Monte Roraima tange a tessitura de nossa pela. Os cimos da Serra do Rio do Rastro plasmam nosso corpo que dança e luta. Essa terra evoca batalhas por independências, conquistada com braço forte e justiça social como norte. Seguem velozes os voos das flechas de Tiaraju, Cunhambebe e Arariboia. Nosso ir e vir é tal, que chega a ser continental. Trem, nem sempre tem, mas sempre tem quem te quer bem!
III - MINHA CASA É SEU MUNDO E MINHA GENTE É SEU POVO
Terra Papagalli: Somos de Pindorama. Abya Yala é aqui também. Dos ancestrais aos originários, dos que vieram antes de outros quadrantes, depois de tudo, somos brasilianos de terra nova em novo mundo. Uma icamiaba virgem, esculpe em jade, um novo Muiraquitã. Nossa esperança vibra à flor do pelo, e nossa pele é tanta, de tinta retinta, preta, parda, morena, indígena, branca, de todos os tons: nossa mescla tem matizes e matrizes misturadas na paleta da vida. A genética plural que nos modela, cromossômica e helicoidal, constrói em uníssono um vocábulo rizomático: equidade na alteridade e diversidade na democracia. Na orla de Coruripe, o caiçara e o gringo singram na mesma jangada. Em Floripa, o nativo e o universal bebem juntos a cachacinha de alambique em cumbuca de argila. No Cerrado, o mestiço e o cosmopolita lançam a mesma rede no Lago Paranoá. Nossa lei se chama Paz. Nossa bandeira se chama Amor. Nosso hino é alento e acalanto. Nosso corpo tem cicatrizes mas nossa alma é de festa. Por aqui, somo um povo manso: tacape na opressão, borduna no autoritarismo e zarabatana no fascismo. Em nosso lugar de fala, de reza e de vida, fazemos contas com miçangas e terabytes: Eu + tu = nós. Nós + eles = minha taba é local, nossa aldeia é global. Aqui a soma é sempre resulta sempre mais: sempre cabe mais um. Nessa equação, mais que dividir o bolo-de-rolo, multiplica-se o vinho, e também o café e ainda o tacacá. A coragem, rebeldia e subversão nos constituíram com as lutas por liberdade, desde Zumbi, Calabar, Anita Garibaldi, Olga & Prestes, Lamarca, Marighella, Niemayer. Forças que ainda reverberam em todos nós, por todos nós! Aos forasteiros imantados pela magia daqui, nosso grito primal: vinde e somai!
IV - PLURALIDADES DA ARTE
Brasil de vasto mapa, mapeadas a memória, a tradição e o folclore. como arte vivaz na contemporaneidade. Na palavra espontânea do repentista, as entrelinhas de um tratado filosófico. No movimento circular da dançarina de Lundu, a lição do sentido da vida. No semblante do brincante de Boi Bumbá, a ideologia que contagia com magia. A norma culta e a fala dita erudita, brindam abraçadas com os sotaques diversos e os falares populares dessa gente que tem o que dizer e sabe o que quer. Toda filosofia estética cabe no olho que hoje sorriu ao avistar uma canoa no Rio Acre. Toda teoria poética cabe na voz do gaudério que entoa uma milonga na invernada. Toda ode antropológica cabe na dança do Xokleng que invoca seus ancestrais. A arte visual pulsa em batimentos inefáveis: seja na ruptura disruptiva das cores de um cocar em Parintins, seja nas nuances frias de uma rede tecida manualmente em Fortaleza, ou ainda nas tonalidades quentes do bordado em um vestido da Oktoberfest. Nesse país, tem rabo-de-arraia na Capoeira de Angola em Itaparica. Tem ginete com potro chucro corcoveando em Barretos. Tem peregrinos que vem de longe ao Círio de Nazaré. Além da lenda: somos imersos em lindas lendas, contos curtos e causos tantos. Yes, nós temos Carnaval. Aqui carnavalizamos a vida, invertemos os poderes instituídos e trocamos os papeis sociais. Sempre com ginga no pé, com ritmo na bateria e muita arte na fantasia.
V - DEVORAR LINGUAGENS PARA REGURGITAR CULTURA
Nesse lugar em que o Atlântico nos encontra, em que os ventos andinos nos alcançam, somos a herança das revoluções da América do Sol, do Sul do orbe, do céu mais azul. Somos entretecidos em revoluções que nos formam e entrelaçados em utopias que nos transformam. Seguimos antropofágicos-antropomágicos. Aqui, ainda devora-se Sardinha, e com tempeiro mineiro. Ao digerirmos sabores da terra, deglutirmos saberes do mundo. Sim: ainda bebemos cauim. Degusta-se axé de fala, graspa, garapa e chimarrão. Nossa fé mais profunda, oblitera as sanhas oligarcas: antigos impérios patriarcais, clãs opressores e dinastias totalitárias aqui cedem lugar a solidariedades comunitárias, canções conjuntas e partilhas do pão entre iguais. Ainda há espaço para desideratos: há sonhos coletivos que desenham-se nas redes do pescador, há desejos amorosos no rasto da canoa, há mistério no tapete de estrelinhas alvacentas que o luar tece sobre a foz do Velho Chico. Aqui o capitalismo foi devorado e regurgitado como pacto social. A elite não é eleita: da política poética à ética pacífica, da verve artística ao idílio utópico. Fora fardas! Fora fardos! Fora feudos! Fora fraturas de futuros! Adeus tropas, patrulhas e pelotões! Bem-vindos saraus, tertúlias e folguedos!
VI - NO LADO CERTO DA HISTÓRIA
Em nosso brasão brasilíaco dentro do coração, permanecem o verde-amarelo, tanto quanto o vermelhusco coruscante, rubro encarnado Brasil. Na tela do porvir, o início de um novo destino e tintas do arco-íris. O vizinho ao lado e do outro lado do mundo, nos fortalece, pois nossa rua é parte da pátria, estradas sem fim. Quem nos visita, em lume sublime ilumina-se. Eis que a (r)evolução já aconteceu. E, contamina, penetra, expande, pois a senha de nossa cidadania chama-se: afetividade! Nosso estar no mundo contagia, sutilmente poliniza outras pólis, outros povos, país adentro, Brasil afora.
[Ação integrante do projeto GELEIA GERAL – A Semana de 22 Cem Anos Depois | Coord.: Artur Gomes (RJ)]
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