segunda-feira, 3 de abril de 2023

Arte: Bruna Barreto


A Educação pela Pedra

 

Uma educação pela pedra: por lições;

para aprender da pedra, frequentá-la;

captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).

 

A lição de moral, sua resistência fria

ao que flui e a fluir, a ser maleada;

a de poética, sua carnadura concreta;

a de economia, seu adensar-se compacta:

 

lições da pedra (de fora para dentro,

cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão

(de dentro para fora, e pré-didática).

 

No Sertão a pedra não sabe lecionar,

e se lecionasse, não ensinaria nada;

lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

uma pedra de nascença, entranha a alma.

 

João Cabral de Melo Neto

Publicado no livro A educação pela pedra (1966).


                     NÃO HÁ VAGAS

 

O preço do feijão

não cabe no poema.

O preço do arroz

não cabe no poema.

 

Não cabem

no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

 

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

 

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila

seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

 

— porque o poema,

senhores,

está fechado:

“não há vagas”

 

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

 

O poema, senhores,

não fede

nem cheira

 

Ferreira Gullar

Na Vertigem do Dia - 1980 


 

A escrita

 

A folha de pele alva

cativa-me...

embriaga-me...

penetra-me n'alma.

Pego de um lápis, se por agora,

a fim de acariciá-la,

dentro de uma simbiose

liamada de prazer.

Sinto frio, calor, suo demasiadamente

vendo cada sílaba ser contorneada.

Orgasmos literários vão e vêm...

Como quem morre, escrevo versos.

      

                              Caio Valeriote


               Antônio Roberto de Góis Cavalcanti - Kapi 


 


A FOGUEIRA

 

Em dezembro, sonhar com janeiro,

em janeiro pensar: fevereiro

vai ser bem diferente

 

A semana inteira chocar o sábado,

no sábado, esperar o domingo.

 

No domingo dizer: no outro, quem sabe?

O tempo todo apoiar-se na bengala

da ilusão, a preferir a cegueira

à visão do abismo.

 

Cansei-me da farsa.

Fiz uma fogueira, joguei

a esperança dentro dela

e arregalei os olhos.

 

                                        Astrid Cabral 


AGOSTO À CONTRAGOSTO

 

O tempo nos tece uma veste

E muito custa esse imposto

Pois lento nos dá outro susto

Gastou-se mais um agosto

 

Posto que vasto é o tempo

E visto que nos é imposto

Viver só um tempo sucinto

Numa sina à contragosto

 

E a soma insana dos anos

Aos poucos sela um desgosto

No raso espaço do espelho

O tempo esculpe seu rosto

 

                                        

                                      Tchello d`Barros


Além de mim

Quero apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

 

                               Olga Savary

 

Ali

ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali ali se dissesse

quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece

 

                                  Paulo Leminski 


Amanhã meu corpo dói

 

se não é de danças e de bênçãos

que eu o cubro

Amanhã as ondas devolvem

o que sem sentir com o dentro

eu mergulhei

Amanhã o coração regurgita

onde eu pisei

sem caber todo o meu ser

 

                           Clara Baccarin


Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

                                            Hida Hilst


Ao teu lado

toda a história do amor:
acordar ao teu lado
de bruços
a penugem das costas, em remoinho
(e esta ave nascida bem no meio das hastes
das duas pontas de faca

no homoplata

                            Mar Becker


Canção Amiga

 

Eu preparo uma canção

em que minha mãe se reconheça,

todas as mães se reconheçam,

e que fale como dois olhos.

 

Caminho por uma rua

que passa em muitos países.

Se não me vêem, eu vejo

e saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

como quem ama ou sorri.

No jeito mais natural

dois carinhos se procuram.

 

Minha vida, nossas vidas

formam um só diamante.

Aprendi novas palavras

e tornei outras mais belas.

 

Eu preparo uma canção

que faça acordar os homens

e adormecer as crianças.

 

Carlos Drummond de Andrade

caverna

 

me tranquei na caverna com platão

pra enfrentar meus próprios  males

não vi primata nem zapata nem dragão

ouvi o cato das sereis pelos bares

chamei pra briga o capeta com facão

senti o aço perfurando a carne mole

gritei bem algo um tremendo palavrão

chamei são Jorge pra ajudar o filho pobre

daqui ninguém sai vivo nem com reza

ou milhão

um dia até o tolo acaba que descobre

perdi o medo de espelho e solidão

só levo a vida coma pele que me cobre

 

Ademir Assunção

Do livro Risca Faca – 2022

 

o negro do céu
abrilhanta a lua
ai, que frio!

em meus sonhos
o telefone toca
acordo.

a lua no céu
estrelas cintilam
oh, insônia

a lua sumiu
o céu escureceu
nada aconteceu

Cesar Augusto de Carvalho
do livro Curto Circuito
Editora Patuá - 2019


Fernando Aguiar 


cheguei ao céu

diz o pinheiro

eu sempre quis

mas

o meu lugar

é a raíz

 

Hamilton Faria

Poemas da janela

DA INCAPACIDADE DE SENTIR LUTO

amas parasita, diz e diz, não hesita:
o amor, errante, além de tudo cego
feito um imenso morcego negro
que, imerso em trevas, só vê o ego

ouves senão por apupos meigos
inflação económica de si mesmo
insuflada por espelhos vesgos
e promessas de paraísos temos

no vazio de si inflas de ilusão
e epifania um Pai de aluvião
que cadencie carnificina e gozo

o ego cego que tem por coração
blindado e oco veloz do ai se esvazia
veloz esqueces crimes e imune à punição
desobrigas-te de tudo
e até do luto

 

                                     Ademir Demarchi 


Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora quem está por fora
não segura
um olhar que demora de dentro de meu centro
este poema me olha 


                                                    Paulo Leminski


FAVELA

Meio-dia.
O morro coxo cochila.
O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.

Aquela casa de janelas com dor-de-dente
amarrou um coqueiro do lado.
Um pé de meia faz exercícios no arame.
Vizinha da frente grita no quintal:
— João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora.
Mamoeiros estão de papo inchado.
Negra acocorou-se a um canto do terreiro.
Pôs as galinhas em escândalo.
Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.

À porta da venda
negro bocejou como um túnel.

 

                                   Raul Bop 

Flor dos Santos

 

Santa Bárbara que nos livra do corisco.
São Bento que cura mordida de cobra,
São Gonçalo casador.

São Jorge que me cedeu o seu nome
pra meu pai me batizar,
que escolheu o seu dia
pra eu chegar nesse mundo,
que só não me deu seu cavalo
porque o pobre do bichinho
não podia descer da lua!

Pulei tanta tacha de engenho,
passei tanta correnteza,
conheci tanto perau fundo!

E você, meu anjo da guarda,
nunca me disse seu nome,
pra eu fazer um poeminha pra você!

 

Jorge de Lima

Iansã

 

guerreira, charmosa e doce
filha da guerra e do fogo
produz vento, tempestade.
o incauto, coitado,
se envolve na suavidade
de seu olhar esverdeado,
de seu sorriso estonteante,
sem saber, está enredado!

 

Cesar Augusto de Carvalho

Jura secreta 13 

o tecido do amor já esgarçamos 
em quantos outubros nos gozamos 
agora que palavro Itaocaras 
e persigo outras ilhas 
na carne crua do teu corpo 
amanheço alfabeto grafitemas 

quantas marés endoidecemos 
e aramaico permaneço doido e lírico 
em tudo mais que me negasse 
flor de lótus flor de cactos flor de lírios 
ou mesmo sexo sendo flor ou faca fosse 
Hilda Hilst quando então se me amasse 

ardendo em nós salgado mar

e Olga risse 
pulsando em nós flechas de fogo

 se existisse 
por onde quer que eu te cantasse ou Amavisse
 


 Jura secreta 14 

 

eu te desejo flores lírios brancos 
margaridas girassóis rosas vermelhas 
e tudo quanto pétala 
asas estrelas borboletas 
alecrim bem-me-quer e alfazema 

eu te desejo emblema 
deste poema desvairado 
com teu cheiro teu perfume 
teu sabor teu suor tua doçura 

e na mais santa loucura 
declarar-te amor até os ossos 

eu te desejo e posso : 
palavrArte até a morte 
enquanto a vida nos procura 

 

Artur Gomes

Juras Secretas

Editora Penalux – 2018

www.secretasjuras.logspot.com


Let's Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that

                                  Torquato Neto


Memória

Em meu dedo
o teu dedal


(tento, mãe
costurar tua memória
prender-te ao que me resta)

Incertos pontos
que a vista embaçada
não deixa urdir

      Dalila Teles Veras

NA GARGANTA

 

Se me perguntares outra vez porque escrevo

gritarei contigo todo o meu poema reduzido:

Escrevo porque preciso

– tenho a alma entalada na garganta

e um coração refém dos meus ouvidos

isso é tudo.

 

                                Nic Cardeal 


O Bicho

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

 

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

 

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

 

O bicho, meu Deus, era um homem.

 

                           Manuel Bandeira

O mundo que eu venci deu-me um Amor

O mundo que eu venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.

O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo.
Por cima de qualquer fosso de sexo.

O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.

Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...

 

                                        Mário Faustino

 O SER O VOO


Nenhum ser é plenamente voo
se não sabe da magia da terra
ou totalmente luz
se o escurecer lhe cega
Todo horizonte é terrível
se o voo nega
o passo elementar

Logo   sigo   quase    pássaro

                 Hamilton Faria

PARA UM NEGRO


para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.


para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
                     o coração.

 

                   Adão Ventura

POEMA DO AVESSO

 

 O que há em mim

é a lenta preparação

do que há em ti

                    sombra segada

                    sangrada

                    e sagrada

                    até nos olhos

dos meninos que nasceram

                 sem olhos

 

vidência única

(vide o verso)

 

visão múltipla

(vede o anverso)

 

e tudo que está do outro lado

do espelho.

 

 

                                          Rubens Jardim

PONTA DAS ASAS

 

e se me fico assim
nessa espera doída de um abraço seu
dos que me acalentam
à borda do furacão
ou nessa angústia covarde
de que a ponta dos ossos de suas asas
arranhem minha alma já avariada

neste aguardo ansioso de sua língua fervente
a lamber meu corpo a me acalmar o sono
ou o medo pavor de que o bifurcado escaldante
queime arranque minha pele

e se me fico assim
com essas esperanças cegas
a me preparar para o pulo

 

                         Claudinei Vieiraa 

 TANTO ÓDIO, CARLOS

 

o mundo é grande

e tem extremos

 

tem estrelas e tem estrume

tem perfume e tem veneno

 

tem dias que a gente ama

tem dias que a gente briga

 

mundo mundo vasto mundo

mundo malo mundo bueno

 

não me chamo raimundo

mas algo estranho me intriga

 

como cabe tanto ódio

num caráter tão pequeno

 

Ademir Assunção

Risca Faca – São Paulo

Selo Demônio Negro - 2021

 Uma didática da invenção

 

O rio que fazia uma volta

atrás da nossa casa

era a imagem de um vidro mole...

 

Passou um homem e disse:

 

Essa volta que o rio faz...

se chama enseada...

 

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro

que fazia uma volta atrás da casa.

 

Era uma enseada.

 

Acho que o nome empobreceu a imagem.

 

                            Manoel de Barros

 Mímica, meu pão

o silêncio que inscreveu
na tecedura da vida
Hoje não sou mais silêncio
e nem silenciado,
a mímica desenhou
me deu asas
me deu o mundo,
e hoje, sou viajante
de outros mundos.

Jidduks
Foto: Ilana Agnes



 O desejo da boca é o beijo

 

onde mora o objeto do desejo

no desejo do objeto

no concreto no poema

a palavra sangra

a palavra goza

a palavra grita

na escrita em todo corpo desejado

o desejo da boca é o beijo

quando ainda não roubado

 

Artur Gomes

para Juliana Stefani

3 abril 2023 – arte José César Castro




ODE À PINDORAMA
Manifesto de 2022 | Tchello d’Barros

 


I - BRASILIANÍSSIMAS

Minha terra é brasilíada, brasidílica, brasilinda! Minha terra tem mais que palmeiras, é Pindoramagia! A descoberta desse Brasil é diária. A conquista, também. Aqui tem pau-brasil, pau brasino de brasido e brazedo: brasilivre de orlas paradisíacas, areias que guardam pegadas de curipiras e matas que são moradas de mapinguarís. Aqui tudo que se planta dá e recebe, a dar com o pau. É lugar de flora melíflua, flores ebúrneas, pétalas ebóreas, inflorescências arborescentes.  Olores de eflúvios oníricos e semeadura de revolução que germina em conquistas do povo, da pólis, de todos. A esperança está na brisa, em flagrante fragrância que poliniza, poesia que prolifera, verve que poliflora. Bem-vindos a esta nação de ritos: de Torés transcendentes, de Cruzes redentoras, de Terreiros libertários.

 

II - ENTRE PASÁRGADA E ILHA DE UTOPIA

Uma criança desenha a palavra amor na areia da praia de Itamaracá. As sombras das casas nos povoados e vilas de nosso Brasil profundo, crescem no poente, formando palavras como: recanto, idílio e paraíso. Óbidos, Blumenau e Olinda. É nesse costado que o Sol nascente encontra primeiro a América menos americana das Américas. Essa terra tem dono sim senhor: há tem perímetros e pontos cardeais, mas as fronteiras são de abraços, brindes e sorrisos. Brasilíada, daqui e de lá: do Arroio do Chuí, no Sul, ao Monte Caburaí no Norte; da Nascente do Rio Moa, no Oeste, à Ponta do Seixas, no Nordeste. Aqui a bússola da liberdade se desenha no ir e vir da rosa dos ventos elíseos.  Territórios de florestas e floreiras, matas e clareiras, ilhas de praia, areia e onda: tem surf na pororoca e mergulho no Pantanal. Escalada no Monte Roraima e neve em Brunópolis. Desde navegações pelo Rio Madeira a jornadas pelos Caminhos do Peaberú.  Nossos rios são ruas de ontens e amanhãs: fluem no dia de hoje em nossa parcela planetária. Os afluentes do Rio Amazonas tingem o sangue debaixo da derme. O cume do Monte Roraima tange a tessitura de nossa pela. Os cimos da Serra do Rio do Rastro plasmam nosso corpo que dança e luta.  Essa terra evoca batalhas por independências, conquistada com braço forte e justiça social como norte. Seguem velozes os voos das flechas de Tiaraju, Cunhambebe e Arariboia. Nosso ir e vir é tal, que chega a ser continental. Trem, nem sempre tem, mas sempre tem quem te quer bem!

 

III - MINHA CASA É SEU MUNDO E MINHA GENTE É SEU POVO

Terra Papagalli: Somos de Pindorama. Abya Yala é aqui também. Dos ancestrais aos originários, dos que vieram antes de outros quadrantes, depois de tudo, somos brasilianos de terra nova em novo mundo.  Uma icamiaba virgem, esculpe em jade, um novo Muiraquitã. Nossa esperança vibra à flor do pelo, e nossa pele é tanta, de tinta retinta, preta, parda, morena, indígena, branca, de todos os tons: nossa mescla tem matizes e matrizes misturadas na paleta da vida. A genética plural que nos modela, cromossômica e helicoidal, constrói em uníssono um vocábulo rizomático: equidade na alteridade e diversidade na democracia.  Na orla de Coruripe, o caiçara e o gringo singram na mesma jangada. Em Floripa, o nativo e o universal bebem juntos a cachacinha de alambique em cumbuca de argila. No Cerrado, o mestiço e o cosmopolita lançam a mesma rede no Lago Paranoá.  Nossa lei se chama Paz. Nossa bandeira se chama Amor. Nosso hino é alento e acalanto. Nosso corpo tem cicatrizes mas nossa alma é de festa. Por aqui, somo um povo manso: tacape na opressão, borduna no autoritarismo e zarabatana no fascismo. Em nosso lugar de fala, de reza e de vida, fazemos contas com miçangas e terabytes: Eu + tu = nós.  Nós + eles = minha taba é local, nossa aldeia é global.  Aqui a soma é sempre resulta sempre mais: sempre cabe mais um. Nessa equação, mais que dividir o bolo-de-rolo, multiplica-se o vinho, e também o café e ainda o tacacá. A coragem, rebeldia e subversão nos constituíram com as lutas por liberdade, desde Zumbi, Calabar, Anita Garibaldi, Olga & Prestes, Lamarca, Marighella, Niemayer. Forças que ainda reverberam em todos nós, por todos nós! Aos forasteiros imantados pela magia daqui, nosso grito primal: vinde e somai!

 

IV - PLURALIDADES DA ARTE

Brasil de vasto mapa, mapeadas a memória, a tradição e o folclore. como arte vivaz na contemporaneidade. Na palavra espontânea do repentista, as entrelinhas de um tratado filosófico. No movimento circular da dançarina de Lundu, a lição do sentido da vida. No semblante do brincante de Boi Bumbá, a ideologia que contagia com magia. A norma culta e a fala dita erudita, brindam abraçadas com os sotaques diversos e os falares populares dessa gente que tem o que dizer e sabe o que quer.  Toda filosofia estética cabe no olho que hoje sorriu ao avistar uma canoa no Rio Acre. Toda teoria poética cabe na voz do gaudério que entoa uma milonga na invernada. Toda ode antropológica cabe na dança do Xokleng que invoca seus ancestrais. A arte visual pulsa em batimentos inefáveis: seja na ruptura disruptiva das cores de um cocar em Parintins, seja nas nuances frias de uma rede tecida manualmente em Fortaleza, ou ainda nas tonalidades quentes do bordado em um vestido da Oktoberfest.  Nesse país, tem rabo-de-arraia na Capoeira de Angola em Itaparica. Tem ginete com potro chucro corcoveando em Barretos. Tem peregrinos que vem de longe ao Círio de Nazaré. Além da lenda: somos imersos em lindas lendas, contos curtos e causos tantos.  Yes, nós temos Carnaval. Aqui carnavalizamos a vida, invertemos os poderes instituídos e trocamos os papeis sociais. Sempre com ginga no pé, com ritmo na bateria e muita arte na fantasia.

 

V - DEVORAR LINGUAGENS PARA REGURGITAR CULTURA

Nesse lugar em que o Atlântico nos encontra, em que os ventos andinos nos alcançam, somos a herança das revoluções da América do Sol, do Sul do orbe, do céu mais azul.  Somos entretecidos em revoluções que nos formam e entrelaçados em utopias que nos transformam. Seguimos antropofágicos-antropomágicos. Aqui, ainda devora-se Sardinha, e com tempeiro mineiro. Ao digerirmos sabores da terra, deglutirmos saberes do mundo.  Sim: ainda bebemos cauim. Degusta-se axé de fala, graspa, garapa e chimarrão.  Nossa fé mais profunda, oblitera as sanhas oligarcas: antigos impérios patriarcais, clãs opressores e dinastias totalitárias aqui cedem lugar a solidariedades comunitárias, canções conjuntas e partilhas do pão entre iguais. Ainda há espaço para desideratos: há sonhos coletivos que desenham-se nas redes do pescador, há desejos amorosos no rasto da canoa, há mistério no tapete de estrelinhas alvacentas que o luar tece sobre a foz do Velho Chico.  Aqui o capitalismo foi devorado e regurgitado como pacto social. A elite não é eleita: da política poética à ética pacífica, da verve artística ao idílio utópico.  Fora fardas! Fora fardos! Fora feudos! Fora fraturas de futuros!  Adeus tropas, patrulhas e pelotões! Bem-vindos saraus, tertúlias e folguedos!

 

VI - NO LADO CERTO DA HISTÓRIA

Em nosso brasão brasilíaco dentro do coração, permanecem o verde-amarelo, tanto quanto o vermelhusco coruscante, rubro encarnado Brasil.  Na tela do porvir, o início de um novo destino e tintas do arco-íris.   O vizinho ao lado e do outro lado do mundo, nos fortalece, pois nossa rua é parte da pátria, estradas sem fim. Quem nos visita, em lume sublime ilumina-se. Eis que a (r)evolução já aconteceu. E, contamina, penetra, expande, pois a senha de nossa cidadania chama-se: afetividade!  Nosso estar no mundo contagia, sutilmente poliniza outras pólis, outros povos, país adentro, Brasil afora.

 

 

[Ação integrante do projeto GELEIA GERAL – A Semana de 22 Cem Anos Depois | Coord.: Artur Gomes (RJ)]

Mostra Visual De Poesia Brasileira

 

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