impasse
e vem a mão
que corta o gesto,
o pé
que impede o passo
e o estandarte
tomba inútil
e surge um tempo
de pessoas cabisbaixas
que trazem nos olhos
aflição e medo:
o futuro
ficou em pensamento
adiado o momento,
remoem
mãos e gargantas
feridas
estão arquivadas
atrás de portas,
de peitos,
de prantos
este é um tempo
de gravatas
no pescoço;
nas ruas,
os ternos passeiam
e se esquecem
mas há de surgir
um tempo
de gargantas
sufocadas
de frontes
retesadas
adquirindo vida
há de voltar-se
atrás de pensamento
e sacudir-se poeiras
dos arquivos
e revolver-se
todo mundo,
toda mente
há de se ter
um saldo positivo
e o punho à frente:
há de enterrar-se
as fardas e os ternos
para sempre
Antonio Roberto de Gois Cavalcanti – Kapi – Coletânea Ato 5 – 1979 – Grupo Uni-Verso
e ela vai pintando
o homem com a flor na boca
com seus pincéis de aquarela
poema que só é possível
pelas lentes dos olhos dela
SATURNAL
Paraíso é essa boca fendida de romã
— bagos de vida,
paraíso é esse mistério de água ininterrupta
fluindo do terminal das coxas,
é a vulva possuída-possuindo
violáceo cacho de uvas,
é esse dorso de vinho navegável
atocaiado para um crime.
Olga Savary
Enciclopédia
Hácate ou Hécata, em gr. Hekáté. Mit.
gr.
Divindade lunar e marinha, de
tríplice
forma (muitas vezes com três cabeças
e
três corpos). Era uma deusa órfica,
parece que originária da Trácia.
Enviava
aos homens os terrores noturnos, os
fantasmas
e os espectros. Os romanos a
veneravam
como deusa da magia infernal.
Ana Cristina César
O
Duplo
Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.
Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.
Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.
Canção Amiga
Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não se veem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças
Carlos Drummond de Andrade
O meu cabelo varrido
eu lhe dou. Se quiser mais
busco palavras na feira
falo dos algodoais
já plantados numa beira
dos seus olhos vendavais.
Romério
Rômulo
COMO UM RIO 1
Talvez eu seja só
o que se perdeu
no espelho,
buscando chaves
onde não existem portas.
Incontáveis são meus juízes;
esses que me aferem
pela cor da carne — sem
os ossos — fac-símiles
atados à História.
Vivo de desperdiçar
a dor —,
reinventando afetos.
)Ah, esses desviados
que nos amam
à medida
dos incêndios, como se amar
fosse morrer!(.
Vivo de erguer esfinges
onde a palavra faz seu ninho.
Não tenho espadas
para medir meus rastros,
sou somente um rio
à sombra dos tigres.
Salgado Maranhão
Espero resignado
por um mundo
que jamais abraçarei.
Como então explicar
o sentimento de felicidade
que me abraça, agora?
Espero um destino
que, de tão óbvio
só me resta rir
e rir com gosto.
Rir com os amigos,
escrever poemas
sem esperar o amanhã.
A vida é muito sem graça
para quem não deseja riqueza
para quem despreza o prazer
para quem ri de si mesmo.
Em algum lugar
do multiverso, talvez
o James Web já saiba
disso, mas vou falar...
Em algum lugar
ao modo de Maiakóvski
exista, acredito, que
no planeta marte,
Um único micróbio feliz.
Jiddu K. Saldanha
in_digesto
almocei letras
nem todas
por mim colhidas
encolhi-me
disfarcei o horror
de saber
dentro de mim
mil palavras
reverberando estanques
na estante
consumo-me insensatez
:
gesto solidão
Ivy
Menon
Ofício
as meninas da periferia querem
aprender o ofício da escrita
as mais velhas também
porque quando uma mulher escreve não
há saposguelaabaixo
não há voz alta mandando calar
quando uma mulher escreve
os túmulos das bisavós tremem
e uma flor nasce na quebrada do muro
saliente e vermelha
Imagem do excelente filme : Ela mora logo ali
Amavisse
Como se te
perdesse, assim te quero.
Como se não te
visse (favas douradas
Sob um amarelo)
assim te apreendo brusco
Inamovível, e te
respiro inteiro
Um arco-íris de ar
em águas profundas.
Como se tudo o
mais me permitisses,
A mim me fotografo
nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu
mesma diluída e mínima
No dissoluto de
toda despedida.
Como se te
perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um
círculo de águas
Removente ave,
assim te somo a mim:
De redes e de
anseios inundada.
Hilda Hilst
um avô, pela dor
destroçado
do injusto cárcere
liberado
vela seu neto morto
um homem, em triste silêncio
armado apenas do que É
em sua dignidade de homem
(estadista inconteste
preso político)
é escoltado à câmara
do seu menino morto
fardas e armas
dedos sobre o gatilho
posição de atirar
ostensivamente
permanecem
durante a curta hora e meia
que deram ao avô para ficar
com seu menino morto
a cena
diz muito do brasil atual
e mais aind do homem
de quem parte desse brasil
tem tanto medo
ainda que de sua boca
como agora
uma única palavra
seja pronunciada
(Dalila
Teles Veras)
no livro Tempo em Fúria
obs.: sp, 02.03.2019
liberado pela justiça, ex-presidente lula
participa de velório do neto de 7 anos e retorna ao presídio em curitiba. g1.globo.com
Marca
Registrada
não tem problemas
te encontrar na cama
com teu governante
eu sempre soube
tua fome era de prazer
e esse teu amante
esse teu amante baby
sempre foi um grande ditador
não entro nessa de pensar que a vida
é marca registrada
numa dissonante do meu rock and roll
pode ser que eu ganhe
um chifre em minha cara
mas o prazer que que eu tenho
é estar de baixo do teu cobertor
Artur
Gomes/Luizz Ribeiro
Qualquer Prazer – disco vinil
lançado em 1992
gravada também no CD Fulinaíma Sax Blues Poesia – 2002 –No vinil
Qualquer Prazer, Marca Registrada é rock and roll, no CD Fulinaíma Sax Blues Poesia, foi gravada numa versão
blues: Luizz Ribeiro (voz e violão) e Ângelo Nani (gaita).
eclosão atlântica
o sal que escorre
sobre tuas costas
é mar de esperma
que vai fecundar
entre tuas coxas
mariscos ostras
peixes vários
na explosão das algas
quando o mar do cio
em eclosão atlântica
for comunhão de olgas
e as conchas grávidas
de sereias
parir em seus ouvidos
Federico Baldelaire
leia mais no
blog https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/