Sarau Cultural
As Multilinguagens no Museu
4ª edição – 30 de junho – 19
Poema de Kapi para interpretação de
Paulo Victor Santana e Jonas Menezes
No Museu Histórico de Campos
USINA
Antônio Roberto Kapi de Góis
Cavalcanti
Usina:
Usina são uns olhos
despertos antes do sol,
a boca mal-lavada
num gole de café...
e um esfregar de mãos
para aquecer o dia.
Usina é uma longa
E curta caminhada,
Inventada em carrocerias,
carroças e bicicletas.
Ou um usar de pés
pra se fazer o dia.
Usina é um balé!
de lenços-de-cabeça,
camisas de xadrez,
foice e facão...
entre gole e outro
de café,
Usina é um apito
de sol a pino,
feito de marmitas,
quando os olhos nada dizem
e as bocas são limpas
por mãos em costas.
Usina é um gosto
(doce-amargo)
de uns caldos escorrendo,
ora nas moendas
ora nos moídos...
É um fazer de conta,
Pós-apito,
Na birosca ao lado
Com uns parceiros:
Um remedar da vida.
Depois
Um mal dormir
De pais e filhos
(de fome, de frio, de medo)
Para que antes que o sol
Se tenha despertado,
— USINA É USURA!
São uns olhos
Que se estendem
Quando em vez
À casa-grande...
São umas vidas
Escapando pela chaminé
Um rio
Era uma vez…
Um rio
Que de tão vazio,
já não era rio
e nem riachão,
tão pouco riacho.
Não era regato,
nem era arroio,
muito menos corgo.
Era uma vez…
um rio
que, de tanta cheia,
já não era rio
e nem ribeirão.
Era mais que Negro,
era mais que Pomba,
era mais que Pedra,
era mais que Pardo,
era mais que Preto,
bem maior ainda
que um rio grande.
Era uma vez…
um rio
que de tão antigo
era temporário,
era obsequente,
era um rio tapado
e antecedente.
Que não tinha foz,
que não tinha leito,
que não tinha margem
e nem afluente,
tão pouco nascente.
Mas que era um rio.
Não era das Velhas,
não era das Almas,
não era das Mortes.
Era um Paraíba,
era um Paraná,
era um rio parado.
Rio de enchentes,
rio de vazantes,
rio de repentes:
Um rio calado:
Sem Pirá-bandeira,
Sem Piracajara,
Sem Piracanjuba.
Em suas águas
não havia Pira
não havia íba,
não havia jica,
não havia juba.
Nem Pirá-andira,
nem Piraiapeva,
nem Pirarucu.
Era um rio assim:
Sem pirá nenhum.
Mas que era um rio.
Era uma vez….
Um rio.
Que, de tão inerte,
Já não era rio.
Não desaguou no mar,
não desaguou num lago,
nem em outro rio.
É um rio antigo,
que de tão contido
não é natureza.
Um dia foi rio,
há muito é represa.
Antônio Roberto Góis Cavalcanti(Kapi)
O
COISA RUIM
me querem manso
cordeiro
imaculado
sangrado
no festim dos canibais
me querem escravo
ordeiro
serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal
me querem rato
acuado
rabo entre as pernas
medroso
um verme, pegajoso
mas eu sou osso
duro de roer
caroço
faca no pescoço
maremoto, tufão, furacão
mas eu sou cão
lato
mordo
arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade
qual nero
devasto o lero lero
entro em campo
desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato
Ademir
Assunção
(do livro
Zona Branca, 2001
Epifania
(p/
euclides, yeats e soffiati)
guiava a picape pela montanha
entre curvas da estrada e do rio
que ambos seguiam à planície
na qual não nasci, mas habito
desde quando aprendi a pisar
e a montanha nas suas certezas
de subir e descer no caminho
falou-me na língua das pedras
de onde brotam as águas:
— decifra-me ou te desfaço!
feito do barro massapê
sobre o qual caminhei a vida
tendo o plano por destino e partida
consultei as cores do crepúsculo
que, melancólicas, se riram de mim:
— de onde vens? — indagaram-me as
cores
— de cambuci, refúgio dos puris!
— para onde vais?
— aos campos dos goitacás!
— o que corre ao seu lado?
— o rio!
— e para onde corre o rio?
— ao mar!
e riram-se de novo as cores:
— pois então!
a montanha, descontente pela ajuda
escondeu o sol e exilou as cores
antes que se voltasse a mim,
respondi:
— não te decifro, sou você
sou teu barro, que o rio lava,
carreia e forma a planície
sou o que deságua no mar e o escurece
meu templo não se ergue na pedra
mas no que nela colide e desprende
não me desfaço, transformo!
Aluysio Abreu Barbosa
atafona, 04/06/2000
interpretado por Saullo Oliveira na Terceira Edição do Sarau Cultural - As Multiliguagens no Museu - 26 maio - 2023 - no Museu Histórico de Campos dos Goyatacazes-RJ
Tempestade/Temporais
Eu sou
avesso
atravesso a
cidade
com o que me
interessa
as vezes sou
sossego
outras vezes tenho pressa
não procuro o que não quero
me abstenho
no que faço
me abstrato quando posso
me concreto em cada passo
o compasso é argamassa
o absinto quando traço
uma linha
nunca reta
da palavra em descompasso
se sou torto não importa
em cada
porta risco um ponto
pra revelar os meus destroços
no alfabeto
do desterro
nessa cidade eu desabafo
Artur Gomes Fuliaíma
https://personasarturianas.blogspot.com/
AGORA NÃO SE FALA MAIS
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
Torquato Neto
Mal Secreto
Jards Macalé/Wally Salomão
Na interpretação de Gal
Costa
Não choro
Meu segredo é que sou
Rapaz esforçado
Fico parado, calado, quieto
Não corro
Não choro
Não converso
Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual
Tudo legal
Mas quando você vai embora
Movo meu rosto do espelho
Minha alma chora
Veja o Rio de Janeiro
Veja o Rio de Janeiro
https://www.youtube.com/watch?v=dsj8O0Ka864
Origem
sou afro-tupi
guarani
goitacá que subiu o paraíba
para o litoral paulista
nasci na cacomanga
bicho do mato
curupira carrapato
sou campista
não tiro onda de turista
sou Retalhos Imortais do SerAfim
comigo é assim
:
nem fiado nem à vista
II
África sim
minha mãe de sangue
cresci mamando do teu leite
lambendo o sal
da tua carne quente
bebendo água suja
no tanque
sou fel pimenta azeite
quem quiser que me aguente
eu sou a lama do mangue
metáforas em linhas curvas
quando manhã canta e não chove Lucia me fala das coxas de Yve mergulhadas no Pontal até a última sílaba do poema letras salgadas de mar embora mesmo que agora chova e a noite seja um relâmpago de estrelas sinto que nos falta um vagalume para alumiar a escuridão tantas vezes lamparina acesa no bar de neivaldo foram lâmpadas florescentes entre olhos famintos de luz no verão de 2010.
Teatro do Absurdo
o quarteto da hipotenusa
versus o quadrado do quarteto
da hipotenusa a musa no quadrado
do retrato fosse apenas fotografia
mas não sendo hipotenusa
somente musa algaravia
uma palavra mais que estrada
sendo musa multi via
me levou nessa jornada
para fora da bahia
todos os santos mar aberto
no abismo a fantasia
de querer musa entretanto
muito mais que poesia
A flor dos meus delírios
tem um nome indecifrável
quase impossível e se definir
passeia na ponta da minha língua
uma palavra com J
faz tempo acho que desde 1996
numa madrugada de agosto
na fonte do desejo
bebi tua sede de vinho
tua carne não matou a minha fome
ainda – nas entranhas dos vinhedos
mesmo que não quisesse negar não posso
seria falso dizer que não desejo
minha escrita
grita
muitas vezes
invento
palavras soltas ao vento
A flor dos meus delírios
tem cheiro de poesia
relâmpagos de Iansã
incêndio no meio dia
Netuno em polvorosa
me disse em verso e prosa
que ela vem com o frescor da maresia
e eu serei o seu Ogum
anjo da guarda e companhia
hoje mesmo distante
esse preamar me incendeia
ondas espumas explodem na areia
tempestades trovoadas ventania
e nem sei se estando perto
calmaria
Estação 353
para Cecília in memória
eu planto
minha estação existe
a adubagem orgânica está completa
não sou negacionista nem sou triste
sou poeta
irmão das coisas da alegria
eu sinto o gozo no tormento
atravesso noites e dias - invento
eu sei que planto
e o sistema é bruto
mas a terra gira como pomba gira
amora minha eterna namorada
e amanhã eu sei colherei teus frutos
nessa minha estação amada
era um vez um mangue
e por onde andará Macunaíma
na tua carne no teu sangue
na medula no teu osso
será que ainda existe
algum vestígio de Macunaíma
na veia do teu pescoço?
tá no canto da sereia
tá no rabo da arraia?
Joilson Bessa me disse
Kapi ducéu já ensaia
Macunaíma vem vindo
no Auto do Boi Macutraia
Artur Gomes
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hipotemusa
a menina da lanchonete
hoje rói as unhas de ira
pira quando quero
o que ela pensa que é
apenas bolero
na praça são salvador
com esse poema torto
que te leva ao desconforto
de pensar o que não sinto
como ela vive sozinha
entre pastéis e empadas
sua vida é hora marcada
de entrada e de saída
não conhece uma outra vida
por isso me olha estranha
com uma sede faminta
de comer meus olhos
com palavras – quando te digo
: não minta
Hipotemusa 1
a menina da lanchonete
em frente a floricultura
são salvador
mexe na flor dos cabelos
dedos entre pelos
enquanto aguço os olhos
pensando mar de abrolhos
na terceira margem do rio
leio um poema no cio
Hipotemusa 2
ela bagunça meus 7 sentidos
aguça lambuza
planta um punhado de brócolis
no pé do meu ouvido
me dá de beber mastruz com leite
de comer esphirra koreana
lhe chamo de sacana
ela me diz que é bacana
me fazer de pé de moleque
pra lamber meus sustenidos
Hipotemusa 3
ela agora usa piercing no nariz
sem medo de ser feliz
joga capoeira no mercado
aprendeu dançar suing
não dá mole pra racista
nem pra patrão
que escraviza empregado
HIPOTEMUSA 4
essa garota me alucina
não sabe ficar quieta com Santa Teresa
no Parque das Ruínas
tem mais de mil desejos
um deles é quebrar meus óculos
com sua fome de beijos
tem mais de mil ofícios
um deles é mapear o litoral
das minhas costas
pelas praias de São Francisco
essa garota é bárbara
Afrodite Artemanha de Iansã
me banha com sua língua de Vênus
as terças-feiras de manhã
hipotemusa 5
quero botar no seu Orkut
um negócio sem vergonha
um poema descarado
já chegando fevereiro
e meu Rio de Janeiro
fica lindo mascarado
quero botar no seu e-mail
um negócio por inteiro
eu não sou Zeca Baleiro
pra ficar cantando a mama
que ainda tem medo do papa
meu negócio é só com a mina
que me trampa quando trapa
meu negócio é só com a mina
que me canta ouvindo Rapa
Hipotemusa 6
vou encontrá-la
no Rio Psiu Poético
sentidos todos plural
um tanto cético
nessa ponte para o nada
- duvido que não exista
alguma esperança
nos olhos de uma criança
disse-me a hipotemusa
no Amarelinho da Lapa
antes de atravessarmos
para o CCJF
com Alguma Poesia na manga
do lado esquerdo do pulso
rasgar o verbo da fome
e entregar à cara a tapa
Artur Fulinaíma
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www.aaturkabrunco.blogspot.com
ALGUMA POESIA
não. não bastaria a poesia deste bonde que
despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa carregada de
pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.
não. não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô.
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.
não. não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.
não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e uma cheiro de fêmea no ar devorador
aparentando realismo hiper-moderno,
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
uma mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos
não. não bastaria toda poesia
que eu trago em minha alma um tanto porca,
este postal com uma imagem meio Lorca:
um bondinho aterrizando lá na Urca
e esta cidade deitando água em meus destroços
pois se o cristo redentor deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e na certa só faria poesia com os meus ossos.
Artur Gomes
Publicado
no livro Couro Cru & Carne Viva – 1987 e Pátria A(r)mada – 2022
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