quinta-feira, 1 de junho de 2023

Múltiplas Poéticas

Sarau Cultural

As Multilinguagens no Museu

4ª edição – 30 de junho – 19

Poema de Kapi para interpretação de Paulo Victor Santana e Jonas Menezes

No Museu Histórico de Campos 


USINA

Antônio Roberto Kapi de Góis Cavalcanti

 

Usina:

Usina são uns olhos

despertos antes do sol,

a boca mal-lavada

num gole de café...

e um esfregar de mãos

para aquecer o dia.

 

Usina é uma longa

E curta caminhada,

Inventada em carrocerias,

carroças e bicicletas.

 

Ou um usar de pés

pra se fazer o dia.

 

Usina é um balé!

de lenços-de-cabeça,

camisas de xadrez,

foice e facão...

entre gole e outro

de café,

 

Usina é um apito

de sol a pino,

feito de marmitas,

quando os olhos nada dizem

e as bocas são limpas

por mãos em costas.

 

Usina é um gosto

(doce-amargo)

de uns caldos escorrendo,

ora nas moendas

ora nos moídos...

 

É um fazer de conta,

Pós-apito,

Na birosca ao lado

Com uns parceiros:

Um remedar da vida.

 

Depois

Um mal dormir

De pais e filhos

(de fome, de frio, de medo)

Para que antes que o sol

Se tenha despertado,

 

— USINA É USURA!

 

São uns olhos

Que se estendem

Quando em vez

À casa-grande...

 

São umas vidas

Escapando pela chaminé


Um rio

 

Era uma vez…

Um rio

Que de tão vazio,

já não era rio

e nem riachão,

tão pouco riacho.

 

Não era regato,

nem era arroio,

muito menos corgo.

 

Era uma vez…

um rio

que, de tanta cheia,

já não era rio

e nem ribeirão.

 

Era mais que Negro,

era mais que Pomba,

era mais que Pedra,

era mais que Pardo,

era mais que Preto,

bem maior ainda

que um rio grande.

 

Era uma vez…

um rio

que de tão antigo

era temporário,

era obsequente,

era um rio tapado

e antecedente.

 

Que não tinha foz,

que não tinha leito,

que não tinha margem

e nem afluente,

tão pouco nascente.

 

Mas que era um rio.

 

Não era das Velhas,

não era das Almas,

não era das Mortes.

 

Era um Paraíba,

era um Paraná,

era um rio parado.

 

Rio de enchentes,

rio de vazantes,

rio de repentes:

Um rio calado:

 

Sem Pirá-bandeira,

Sem Piracajara,

Sem Piracanjuba.

 

Em suas águas

não havia Pira

não havia íba,

não havia jica,

não havia juba.

 

Nem Pirá-andira,

nem Piraiapeva,

nem Pirarucu.

 

Era um rio assim:

Sem pirá nenhum.

 

Mas que era um rio.

 

Era uma vez….

Um rio.

 

Que, de tão inerte,

Já não era rio.

 

Não desaguou no mar,

não desaguou num lago,

nem em outro rio.

 

É um rio antigo,

que de tão contido

não é natureza.

 

Um dia foi rio,

há muito é represa.

 

Antônio Roberto Góis Cavalcanti(Kapi)


O COISA RUIM

 

me querem manso

cordeiro

imaculado

sangrado

no festim dos canibais

 

me querem escravo

ordeiro

serviçal

salário apertado no bolso

cego mudo e boçal

 

me querem rato

acuado

rabo entre as pernas

medroso

um verme, pegajoso

 

mas eu sou osso

duro de roer

caroço

faca no pescoço

maremoto, tufão, furacão

 

mas eu sou cão

lato

mordo

arreganho os dentes

incito a revolta dos deuses

toco fogo na cidade

 

qual nero

devasto o lero lero

entro em campo

desempato

eu sou o que sangra

um poeta nato

 

Ademir Assunção

 (do livro Zona Branca, 2001



Epifania

(p/ euclides, yeats e soffiati)

 

guiava a picape pela montanha

entre curvas da estrada e do rio

que ambos seguiam à planície

na qual não nasci, mas habito

desde quando aprendi a pisar

e a montanha nas suas certezas

de subir e descer no caminho

falou-me na língua das pedras

de onde brotam as águas:

— decifra-me ou te desfaço!

 

feito do barro massapê

sobre o qual caminhei a vida

tendo o plano por destino e partida

consultei as cores do crepúsculo

que, melancólicas, se riram de mim:

— de onde vens? — indagaram-me as cores

— de cambuci, refúgio dos puris!

— para onde vais?

— aos campos dos goitacás!

— o que corre ao seu lado?

— o rio!

— e para onde corre o rio?

— ao mar!

e riram-se de novo as cores:

— pois então!

 

a montanha, descontente pela ajuda

escondeu o sol e exilou as cores

antes que se voltasse a mim, respondi:

— não te decifro, sou você

sou teu barro, que o rio lava,

carreia e forma a planície

sou o que deságua no mar e o escurece

meu templo não se ergue na pedra

mas no que nela colide e desprende

não me desfaço, transformo!

 

Aluysio Abreu Barbosa

 atafona, 04/06/2000

interpretado por Saullo Oliveira na Terceira Edição do Sarau Cultural - As Multiliguagens no Museu - 26 maio - 2023 - no Museu Histórico de Campos dos Goyatacazes-RJ


Tempestade/Temporais

 

Eu sou avesso

atravesso a cidade

com o que me interessa

as vezes sou sossego

 outras vezes tenho pressa

 não procuro o que não quero

me abstenho no que faço

 me abstrato quando posso

 me concreto em cada passo

 o compasso é argamassa

 o absinto quando traço

uma linha nunca reta

 da palavra em descompasso

 se sou torto não importa

em cada porta risco um ponto

 pra revelar os meus destroços

no alfabeto do desterro

 nessa cidade eu desabafo

 

Artur Gomes Fuliaíma

https://personasarturianas.blogspot.com/



AGORA NÃO SE FALA MAIS

 

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:

Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.

Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:

só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:

não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento

 

Torquato Neto


Mal Secreto

Jards Macalé/Wally Salomão

Na interpretação de Gal Costa

 

Não choro
Meu segredo é que sou
Rapaz esforçado
Fico parado, calado, quieto
Não corro
Não choro
Não converso

Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente

Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual
Tudo legal
Mas quando você vai embora
Movo meu rosto do espelho
Minha alma chora
Veja o Rio de Janeiro
Veja o Rio de Janeiro

 

 https://www.youtube.com/watch?v=dsj8O0Ka864



 Origem

 

sou afro-tupi

guarani

goitacá que subiu o paraíba

para o litoral paulista

nasci na cacomanga

bicho do mato

curupira carrapato

sou campista

não tiro onda de turista

sou Retalhos Imortais do SerAfim

comigo é assim

:

nem fiado nem à vista

 

II

 

África sim

minha mãe de sangue

cresci mamando do teu leite

lambendo o sal

da tua carne quente

bebendo água suja

no tanque

sou fel pimenta azeite

quem quiser que me aguente

eu sou a lama do mangue


metáforas em linhas curvas

quando manhã canta e não chove Lucia me fala das coxas de Yve mergulhadas no Pontal até a última sílaba do poema letras salgadas de mar embora mesmo que agora chova e a noite seja um relâmpago de estrelas sinto que nos falta um vagalume para alumiar a escuridão tantas vezes lamparina acesa no bar de neivaldo foram lâmpadas florescentes entre olhos famintos de luz no verão de 2010.


Teatro do Absurdo

 

o quarteto da hipotenusa

versus o quadrado do quarteto

da hipotenusa a musa no quadrado

do retrato fosse apenas fotografia

mas não sendo hipotenusa

somente musa algaravia

uma palavra mais que estrada

sendo musa multi via

me levou nessa jornada

para fora da bahia

todos os santos mar aberto

no abismo a fantasia

de querer musa entretanto

muito mais que poesia

 

A flor dos meus delírios

tem um nome indecifrável

quase impossível e se definir

passeia na ponta da minha língua

uma palavra com J

faz tempo acho que desde 1996

numa madrugada de agosto

na fonte do desejo

bebi tua sede de vinho

tua carne não matou a minha fome

ainda – nas entranhas dos vinhedos

mesmo que não quisesse negar não posso

seria falso dizer que não desejo


minha escrita

grita

muitas vezes

invento 

palavras soltas ao vento


A flor dos meus delírios


tem cheiro de poesia

relâmpagos de Iansã

incêndio no meio dia

Netuno em polvorosa

me disse em verso e prosa

que ela vem com o frescor da maresia

e eu serei o seu Ogum

anjo da guarda e companhia

hoje mesmo distante

esse preamar me incendeia

ondas espumas explodem na areia

tempestades trovoadas ventania

e nem sei se estando perto

calmaria


Estação 353
para Cecília in memória



eu planto
minha estação existe
a adubagem orgânica está completa
não sou negacionista nem sou triste
sou poeta

irmão das coisas da alegria
eu sinto o gozo no tormento
atravesso noites e dias - invento

eu sei que planto
e o sistema é bruto
mas a terra gira como pomba gira
amora minha eterna namorada
e amanhã eu sei colherei teus frutos
nessa minha estação amada


era um vez um mangue
e por onde andará Macunaíma
na tua carne no teu sangue
na medula no teu osso
será que ainda existe
algum vestígio de Macunaíma
na veia do teu pescoço?

 

tá no canto da sereia

tá no rabo da arraia?

 

Joilson Bessa me disse

Kapi ducéu já ensaia

Macunaíma vem vindo

no Auto do Boi Macutraia 


hoje me surgiu esta ideia:
estava lendo Antonio Cicero
e Antonio Carlos Secchin
e ai pensei - ler ler ler ler re-ler
não escrever - parece-me brincadeira
aprendizado para vida inteira
do mim dentro de mim
o Eu dentro do Eu

o Não dentro do Sim.



Artur Gomes

leia mais no blog

https://fulinaimagens.blogspot.com/



hipotemusa

 

a menina da lanchonete

hoje rói as unhas de ira

pira quando quero

o que ela pensa que é

apenas bolero

na praça são salvador

com esse poema torto

que te leva ao desconforto

de pensar o que não sinto

como ela vive sozinha

entre pastéis e empadas

sua vida é hora marcada

de entrada e de saída

não conhece uma outra vida

por isso me olha estranha

com uma sede faminta

de comer meus olhos

com palavras – quando te digo

: não minta


Hipotemusa 1

 

a menina da lanchonete

em frente a floricultura

são salvador

mexe na flor dos cabelos

dedos entre pelos

enquanto aguço os olhos

pensando mar de abrolhos

na terceira margem do rio

leio um poema no cio

 

Hipotemusa 2

 

ela bagunça meus 7 sentidos

aguça lambuza

planta um punhado de brócolis

no pé do meu ouvido

me dá de beber mastruz com leite

de comer esphirra koreana

lhe chamo de sacana

ela me diz que é bacana

me fazer de pé de moleque

pra lamber meus sustenidos


Hipotemusa 3


 ela agora usa piercing no nariz

sem medo de ser feliz

joga capoeira no mercado

aprendeu dançar suing

não dá mole pra racista

nem pra patrão

que escraviza empregado

 

HIPOTEMUSA 4

 

essa garota me alucina

não sabe ficar quieta com Santa Teresa

no Parque das Ruínas

tem mais de mil desejos

um deles é quebrar meus óculos

com sua fome de beijos

tem mais de mil ofícios

um deles é mapear o litoral

das minhas costas

pelas praias de São Francisco

essa garota é bárbara

Afrodite Artemanha de Iansã

me banha com sua língua de Vênus

as terças-feiras de manhã


hipotemusa 5

 

quero botar no seu Orkut

um negócio sem vergonha

um poema descarado

já chegando fevereiro

e meu Rio de Janeiro

fica lindo mascarado

 

quero botar no seu e-mail

um negócio por inteiro

eu não sou Zeca Baleiro

pra ficar cantando a mama

que ainda tem medo do papa

 

meu negócio é só com a mina

que me trampa quando trapa

meu negócio é só com  a mina

que me canta ouvindo Rapa


Hipotemusa 6

 

vou encontrá-la

no Rio Psiu Poético

sentidos todos plural

um tanto cético

nessa ponte para o nada

- duvido que não exista

alguma esperança

nos olhos de uma criança

disse-me a hipotemusa

no Amarelinho da Lapa

antes de atravessarmos

para o CCJF

com Alguma Poesia na manga

do lado esquerdo do pulso

rasgar o verbo da fome

e entregar à  cara a tapa 

 

Artur Fulinaíma

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www.aaturkabrunco.blogspot.com


 

ALGUMA POESIA

não. não bastaria a poesia deste bonde que despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa carregada de pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.

não. não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô.
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.

não. não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.

não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e uma cheiro de fêmea no ar devorador

aparentando realismo hiper-moderno,
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
uma mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos

não. não bastaria toda poesia
que eu trago em minha alma um tanto porca,
este postal com uma imagem meio Lorca:
um bondinho aterrizando lá na Urca
e esta cidade deitando água em meus destroços
pois se o cristo redentor deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e na certa só faria poesia com os meus ossos.

 

Artur Gomes

Publicado no livro Couro Cru & Carne Viva – 1987 e Pátria A(r)mada – 2022

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