quarta-feira, 5 de abril de 2023

Múltiplas Poéticas

PARA UM NEGRO

para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.

para um negro
a cor da pele
é uma faca
que atinge
muito mais em cheio
o coração.


EU, PÁSSARO PRETO


eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.


NEGRO FORRO


minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.


FAÇA SOL OU FAÇA TEMPESTADE

faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.

faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.


Extraídos de: ANTOLOGIA CONTEMPORÂNEA DA POESIA NEGRA BRASILEIRA, organização de PAULO COLINA. São Paulo: Global Editora, 1982. 103 p. 

ela tem o olhar

sobre a ponte do conhecimento

de Darcy Ribeiro - primeiro grafou

o meu poema com sua bela grafia

depois pintou a ponte

com óleo sobre tela

e fez com que o meu olhar

fosse de encontro a sua arte

do outro lado da janela

 

Artur Gomes

5 - Abril - 2023 - para Bruna Barreto


FRACASSO DA RAÇA

 

uns constroem pontes

uns constroem poemas

 

uns tiram o leite das vacas

uns tiram o leite das pedras

 

(uns bebem o leite das pequenas)

 

uns mandam bem no gogó

uns só no blablablá

 

uns fabricam sucessos

uns fabricam antenas

 

(antenas da raça pagando suas penas)

 

antenas na roça, antenas na praça

do oiapoque ao chuí: antenas

sintonizadas no programa do datena

 

Ademir Assunção

Risca Faca

Selo Demônio Negro - 2022


furor uterino
[adelaide do julinho]

qualquer paixão me diverte

fui passear no mato, caí no buraco
num átimo, dei-me conta do barato:

e mãos à cobra

[ imagem neuza ladeira ] 

 

A posse é uma farsa.

Ilusão. Mentira torta.
Porta entreaberta.
Medo que corta os futuros passos.

Doíam àquelas verdades que não sei se eram minhas.

Nem sei se vou saber um dia.

Ana Sandra


resgate

morena alitera marina
caymmi dentro de mim
fios na vinha dos cachos
negros qual asas de índia

navega o castanho do rio
até sua foz nos meus olhos
dali, só o oceano, menina
o samba salgado do mar

face e quadris feitos píer
açoita o desejo das ondas
náufrago dado na praia
e salvo sobre você

Aluysio Abreu Barbosa

foto: Artur Gomes  - Ubatuba - 2008


Jura secreta 14

eu te desejo flores lírios brancos
margaridas girassóis
rosas vermelhas
e tudo quanto pétala
asas estrelas borboletas
alecrim bem-me-quer e alfazema

eu te desejo emblema
deste poema desvairado
com teu cheiro teu perfume
teu sabor teu suor tua doçura

e na mais santa loucura
declarar-te amor até os ossos
eu te desejo e posso :
palavrArte até a morte
enquanto a vida nos procura

Artur Gomes


www.secretasjuras.blogspot.com



Todas as revelações sempre chegaram até minha alma, desestruturando um dia de sol. Deixando a vidraça molhada. Eu olhava através dela, tentando atravessá-la, mas acabava sempre ancorada num indecifrável desamparo.


Ana Sandra



deus conosco
mas além da cerca
a sede do sangue alheio

deus conosco
mas lá fora espreita
uma noite imensa

deus conosco
e cardumes inteiros
de filhos da puta

deus conosco
mas a faca está cega
no pé da garganta

deus conosco
e o tiro dispara
de mão invisível

deus conosco:
a memória está morta
de vergonha e cinismo

deus conosco:
mas nada interrompe
o incêndio do circo

deus conosco:
sempre dormindo
no instante preciso

* Carlos Moreira

foto: Dudu Linhares  - Rafol de São Thomé


 Já não freio tantos os impulsos. Até me surpreendo. Não consigo ainda compreender os mecanismos da alma. Nem sei se é possível. E continuo chorando. Escondida no escuro de algum lugar.


Ana Sandra


DIAGNÓSTICO

Minha mão direita treme
e me denuncia.
Qual lagoa
Que esconde
Monstros submersos.
Uma luta de Deus
E seu anverso
Em minha floresta
Neuronal.
Minha mão direita treme
E não é de medo,
Desvenda o segredo
Do inimigo
Que trago em mim.
Minha mão direita treme,
Já decifrei o teorema,
Minha mão direita,
Minha mão,
A mesma
Que fez este poema.

Fernando Leite Fernandes 


inseto
[iosif landau]

tá tudo em ordem:
não há herança nem dinheiro nem poupança.

testamento é folha em branco,
não há bens nem castelos na França.

tô bem de corpo e cabeça, não estou demente,
não deixo remédios nem camisa de força pros herdeiros.

apenas eu e minha imagem no espelho
coçamos os pentelhos o dia inteiro.

livros e discos e roupas e retratos
esperam pacientes os ratos festejarem.

descanso na tarde sombria sem companhia
quem se importa se ainda enxergo, ouço ou mijo?

Adelaide do Julinho


Ensaio Fotográfico com minha querida Isadora Zechin lá pelos idos de 2014 em Bento Gonçalves-RS nos intervalos da programação do Congresso Brasileiro de Poesia - enquanto ela lia o livro A Cor da Pele - do queridíssimo poeta irmão Jose Salgado Maranhão Salgado Maranhão

 

enquanto ela lia

o livro a cor da pele

traçava o rito

de uma lente que revele

o que mora entre a língua

e a palavra

escrita ou dita

pela boca

de quem fala

tudo aquilo que não cala

 

Artur Gomes

O Homem Com A Flor Na Boca

https://fulinaimatupiniquim.blogspot.com/


 insolentes leoas libertas

em incontestadas
salas de jantar

" Os rios e morros da planície,
transformais em vosso campo de batalha "

Bertolt Brecht

da fêmea carne preta
de pedra - fogo - fome

( olhos de terra
lábios de sangue )

um salto sul adentro
solto corpo afora

na distância circular
dos dias que se afastam

do infausto fado
de enfado imposto

( de céu as mãos
de sol o rosto )

um estrondo - silêncio
de íntimos anúncios

rasgando a pele
de surdas cidades

da fêmea carne preta
de pedra
fogo
&
fome

garbo gomes

04.04.23


PROCLAMAÇÃO DOS MIRANTES

Luis Augusto Cassas


à sombra dos mirantes coloniais
lavados pelo sol do equador
povoado de luas brancas
assobia o vento leste
soprando promessas do infinito
sonata de redemoinhos
pra embalar passarinhos

iluminado em trevas
proclamo minha dor ancestral
exponho a tristeza que lacera
exércitos de mil demônios
a fúria ardente desta glória
a corrupção dos neurônios
a riqueza da miséria

espírito santo da vida
não permita seja lançado
à senda dos covardes
à trilha dos desertores
restaura-me a alegria aprisionada
quebra os dentes dos pusilânimes
veste-me o manto da coragem

alivia-me as pedras da alma
derrama-me a água viva
invade meu território aéreo
liberta-me da agonia intensa
povoa-me de beleza e amor
consagra e unge-me com azeite
da primeira prensa

sou o que caminhou pelos desertos
e bebeu o fel das pedras consagradas
trago nas mãos os lírios decepados
a tortura dos poentes amaldiçoados
transforma as tragédias em bênçãos
restaura a pureza das nascentes
torna-me manancial de abundâncias

cada palavra carrega um espírito
toda palavra abriga um demônio
irradia o benigno ou o maligno
torna-se objeto de amor ou insônia
mas a aliança com o santo é sagrada
abastece a vida e os descendentes
fortalece os reservatórios do sonho

escombros do mundo
não há mais chão para os heróis
sangram os bules e a estratosfera
cantai fábulas iluminai as florestas
vossos mortos agasalhamos a vácuo
anjos fedorentos não vem deles o bolor
mas dos construtores das misérias

por séculos corri
atrás do vento
enfim o vento
encontrou
meu templo
e o nome do vento
era o espírito santo


espirito santo palavra cara
palavra rara gema de valor
escreve nova história
renova o fogo
em minha alma
dai-me força e glória
paz e esplendor

imagem: Fernanda Galve, paulista, professora da Universidade Federal do Maranhão,, meditando sobre a energia colonial de São Luis do Maranhão


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